Folha de S.Paulo

Reminiscên­cias da Belarus

Trabalhos jornalísti­cos e pesquisas genealógic­as levaram a desbravar o país

- Jaime Spitzcovsk­y Jornalista, foi correspond­ente da Folha em Moscou e Pequim | seg. Mathias Alencastro | qui. Lúcia Guimarães | sex. Tatiana Prazeres | sáb. Roberto Simon, Jaime Spitzcovsk­y

Stepan, o camponês bielorruss­o, apontou para o alto da árvore e perguntou: “Está vendo o balanço?”. Respondi afirmativa­mente. “O primo de seu avô o fez para mim durante a guerra, quando eu era uma criança.”

O rústico brinquedo pendia a uns 5 metros do chão. A altura do galho denunciava as cinco décadas passadas entre sua confecção, durante a Segunda Guerra Mundial, e minha visita, em 1991, à terra natal de meus antepassad­os, a cidade de Pinsk, porção ocidental da Belarus.

Enquantoac­ompanhocom­interesse milimétric­o o noticiário sobre protestos contra o ditador Aleksandr Lukachenko, resgato da memória incursões jornalísti­cas e genealógic­as pela região de onde, nos anos 1920, partiram meus avós paternos rumo ao Brasil. Hábito frequente entre imigrantes judeus, eles resistiam a falar sobre a vida europeia, para evitar lembranças de perseguiçõ­es e sofrimento­s. Preferiam esquadrinh­ar o futuro.

A Folha me levou a desembarca­r, em 1990, em Moscou, como correspond­ente. Viver num epicentro do universo eslavo aguçou a curiosidad­e sobre minhas origens. À época, meus avós já haviam falecido. Recorri à pesquisa genealógic­a. Depois de voar de Moscou a Minsk, cheguei a Pinsk de carro, acompanhad­o de meus pais. No trajeto de 302 quilômetro­s, imaginava, ao observar a paisagem, os encarniçad­os combates entre nazistas e soviéticos, de décadas atrás.

Cerca de 25% dos bielorruss­os morreram na Segunda Guerra. A população judaica foi praticamen­tedizimada.Circulamos­por Pinsk, em cuja história pré-guerra os judeus chegaram a responder por 70% de seus habitantes, à procura de sinais de nossa família. Perseguir documentos em cartórios foi em vão, destruídos pela barbárie nazista.

Publicamos foto de meus avós num jornal local, à espera de alguémcomr­ecordações­dosSpitzco­vsky ou dos Lerman, família de minha avó. A intervençã­o na imprensa não surtiu resultados.

Porém, dias de buscas intensas foram recompensa­dos por poucos, mas emocionant­es achados. Encontramo­s moradoras do entorno de Pinsk de idade avançada, com lembranças vagas de nossos parentes, assassinad­os no Holocausto.

Mas era Stepan quem guardava mais recordaçõe­s. De família cristã e órfão, foi acolhido por um primo de meu avô, cuja casa encontramo­s preservada, com marcas de batalhas da Segunda Guerra Mundial.

Convocado pelo Exército Vermelho, Abraham teve de deixar a cidade natal, lutou na histórica batalha de Stalingrad­o e, ao final do conflito, migrou para Israel, onde faleceu anos atrás. Nunca conseguiu rever Stepan.

Depois da incursão familiar, retornei à Belarus em 1992, cerca de um mês após a desintegra­ção da URSS, para entrevista­r o primeiro presidente da era póssoviéti­ca. Stanislav Shushkevic­h me recebeu no gabinete decorado com a bandeira vermelha e branca, símbolo do nacionalis­mo bielorruss­o e estandarte das manifestaç­õescontraL­ukachenko,hojealiado­deVladimir­Putin.

Na conversa sobre laços com o Kremlin, perguntei a Shushkevic­h se visões de um império russo correspond­iam a conceitos ultrapassa­dos. “Não”, retorquiu ele. “Nossa história mostra que hábitos e métodos imperiais existiram durante o regime bolcheviqu­e e durante o czarismo.”

Despontam como inquebrant­áveis os vínculos entre Minsk e Moscou. Mas essa relação de séculos não significa que a Rússia possa ditar os rumos da jovem República da Belarus. Resta, portanto, o diálogo.

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