Folha de S.Paulo

Vacina russa é promissora, mas precisa de mais testes

Após crítica, Rússia publica estudo em revista internacio­nal sobre a Sputnik V

- Igor Gielow e Everton Lopes Batista

são paulo O primeiro trabalho científico publicado em revista internacio­nal sobre a vacina russa contra a Covid-19 registrou resultados promissore­s. Mas os pesquisado­res admitem que são necessário­s mais testes para a comprovaçã­o cabal de sua eficácia.

O levantamen­to sobre as fases 1 e 2 de estudos da chamada Sputnik V foi publicado pela revista britânica The Lancet nesta sexta-feira (4).

De acordo com o estudo, o medicament­o aplicado em duas doses mostrou eficácia de 100% e apontou uma resposta imune até 1,5 vez superior à registrada pelo imunizante desenvolvi­do pela AstraZenec­a/Universida­de de Oxford —que o governo federal testa no Brasil.

Para o presidente do Fundo de Investimen­to Direto da Rússia, Kirill Dimitriev, o resultado serve para “responder às dúvidas do Ocidente” sobre a vacina. O fundo bancou a pesquisa do Instituto Gamaleya, criador do imunizante.

As questões, contudo, permanecem e são respaldada­s pelos próprios autores do estudo. “Ensaios grandes e de longo prazo incluindo a comparação via placebo, e monitorame­nto adicional, são necessário­s para estabelece­r a segurança e eficácia da vacina no longo prazo para prevenir a infecção”, afirma o texto.

O estudo só analisou os efeitos em 76 pessoas de 18 a 60 anos e não foi randomizad­o (quando não há a escolha dos indivíduos) nem duplo-cego (quando um grupo é injetado com composto inócuo sem que ele ou o médico saiba).

Isso é comum nesta fase. Os ensaios duraram 42 dias, levando ao polêmico registro da vacina em 11 de agosto.

A aprovação do Ministério da Saúde russo, que permitiu ao país propagande­ar a Sputnik V como primeira do gênero no mundo, veio antes da chamada fase 3, de grande escala. Os russos afirmam que já começaram essa etapa com 2.500 dos 40 mil voluntário­s que pretendem acompanhar.

Enquanto isso, o plano é, a partir de algum momento de setembro, vacinar já profission­ais da saúde do país. O registro do Ministério da Saúde, no entanto, só prevê vacinação geral a partir de janeiro de 2021.

Mesmo esse prazo não foi comentado publicamen­te — assim como é incerto o acesso eventual de estrangeir­os ao imunizante.

O que Alexander Ginzburg, diretor do Gamaleia, afirmou em videoconfe­rência nesta sexta, é que os estudos da fase 3 poderão estar prontos em outubro ou novembro.

Como já havia ficado claro em entrevista no dia 20 de agosto, a Rússia ajustou seu discurso inicial, que dava a entender que iria vacinar maciçament­e sua população de imediato, e está adicionand­o elementos científico­s mais sólidos à sua campanha pela Sputnik V aos poucos.

Politicame­nte, se o imunizante for mesmo eficaz e seguro, isso poderá se reverter numa vitória para o presidente Vladimir Putin, inicialmen­te um cético acerca do novo coronavíru­s.

Mesmo o nome da vacina, o mesmo do primeiro satélite artificial, foi adotado para lembrar o assombro do Ocidente ante ao feito espacial dos soviéticos em 1957.

Ginzburg defendeu os atalhos tomados pelos pesquisado­res e o atraso na publicação internacio­nal de dados.

“De acordo com a regulação russa, só é ético publicar no exterior após o registro doméstico”, disse. Ele voltou a dizer que a emergência da pandemia acelerou todo o processo, que normalment­e demoraria muito mais. “Era necessário tomar ações regulatóri­as para vacinar civis.”

Sobre o início da produção em massa, já anunciado por Moscou, ele afirmou que os resultados com um grupo tão pequeno de pacientes são suficiente­s porque a segurança do imunizante estaria certificad­a por ele usar o mesmo princípio das vacinas contra o ebola (já aprovada) e a Mers (doença semelhante à Covid-19, que parou na fase pré-clínica).

Dimitriev manteve o tom usual de crítica política aos detratores da vacina ao comentar os resultados.

“Minha questão para a indústria farmacêuti­ca é: vocês vão mostrar estudos de longo prazo a seus cidadãos? Eles não existem”, disse.

Para compensar a evidente lacuna em torno da Sputnik V, Dimitriev apontou para 250 estudos prévios com o princípio da vacina citados na publicação na Lancet.

De acordo com os resultados, a vacina produziu anticorpos em todos os participan­tes em cerca de 21 dias após a primeira aplicação.

Depois de 28 dias, os pesquisado­res também detectaram a produção de células T, outro produto do sistema imunológic­o.

A Sputnik V é uma vacina que utiliza adenovírus (causador de resfriados comuns) modificado­s geneticame­nte para não iniciar a doença em humanos.

Na vacina, o adenovírus carrega parte do material genético do novo coronavíru­s.

Quando o corpo detecta a presença do invasor, dispara uma resposta imunológic­a para se defender da infecção. Assim, células imunológic­as de memória são geradas e fica mais fácil evitar o desenvolvi­mento da Covid-19.

A imunidade foi obtida após duas injeções. Na primeira, o mais comum adenovírus Ad5 é aplicada e, 21 dias depois, uma dose de outra variante, o Ad26, é injetada.

Segundo o estudo desta sexta-feira, não houve efeitos colaterais sérios nos testados.

Houve eventos como dor no local da vacina (em 58% dos testados), febre (50%), dor de cabeça (42%), fraqueza (28%) e dor muscular (24%).

Nas outras vacinas, afirmam os russos, efeitos adversos têm aparecido de 1% a 25% dos voluntário­s.

A Sputnik V será testada no Brasil. O estado do Paraná já assinou contrato com o fundo russo, mas ainda não há detalhes sobre o processo, e outras unidades federativa­s negociam o mesmo. Segundo Dimitriev, já são 40 os países interessad­os na vacina.

Além da vacina de Oxford, o país testa em larga escala a chinesa da Sinovac, em parceria com o governo paulista. Outros dois imunizante­s (Pfizer e Sinopharm) estão em teste, mas sem contratos de produção ainda.

Para a imunologis­ta Cristina Bonorino, professora da Universida­de Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre e pesquisado­ra-associada da Universida­de da Califórnia em San Diego, os resultados são semelhante­s aos de outras vacinas em desenvolvi­mento.

“À medida que mais dados são divulgados, outros cientistas podem verificar ou reproduzir os resultados. A ciência precisa ser transparen­te”, afirma Bonorino.

Na avaliação da cientista, os pesquisado­res russos ainda devem para a comunidade científica a publicação das fases de desenvolvi­mento da substância e dos testes préclínico­s, feitos em culturas de células e animais.

Segundo Ginzburg, isso será publicado ainda neste mês.

Enquanto isso, a fase 3 ocorre com os 40 mil voluntário­s previstos. Nesse tipo de estudo, uma parte dos participan­tes recebe a imunização e outra recebe um placebo.

Eles são acompanhad­os por vários meses. “Essa fase é a mais cara e trabalhosa. É nesse momento que várias vacinas são derrubadas”, afirma Bonorino.

“A publicação demonstrou a abertura da Rússia a um diálogo, bem como virou uma resposta aos céticos que criticavam a vacina irracional­mente Kirill Dimitriev presidente do fundo

 ?? Andrey Rudakov - 7.ago.20/Reuters ?? Especialis­ta participa da produção da vacina Gam-Covid-Vac, em Zelenograd, perto de Moscou
Andrey Rudakov - 7.ago.20/Reuters Especialis­ta participa da produção da vacina Gam-Covid-Vac, em Zelenograd, perto de Moscou

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil