Folha de S.Paulo

O rosto, a lei e a liberdade

Crescem movimentaç­ões antimáscar­a no mundo

- Luís Francisco Carvalho Filho Advogado criminal, presidiu a Comissão Especial de Mortos e Desapareci­dos Políticos (2001-2004) lfcarvalho­filho@uol.com.br

Obrigado a romper o isolamento social para cumprir uma exigência burocrátic­a, ao chegar ao cartório, encontrei a placa afixada na porta de vidro: “É proibida a entrada de pessoas utilizando capacete ou qualquer tipo de cobertura que oculte a face”.

Todos, funcionári­os e clientes, estavam com máscara e, consequent­emente, escondendo o rosto. A recomendaç­ão sanitária revogou a lei que, desde 2013, proibia em São Paulo, sob pena de multa de R$ 500 (o dobro no caso de reincidênc­ia), ingresso ou permanênci­a de pessoa com “qualquer tipo de cobertura que oculte a face nos estabeleci­mentos comerciais, públicos ou privados”.

É estranho encontrar este vestígio de outra época (tão próxima) que o tabelião não mandou remover. Ou a expectativ­a é a de que lei volte a valer com a normalizaç­ão sanitária?

Até a Covid-19 se alastrar, por ingenuidad­e, ideologia ou intolerânc­ia, o roteiro definido por governante­s de muitos países era o de combater os rostos encobertos e, assim, criar suspeitas e prevenir terrorismo, desordem e criminalid­ade. Máscaras, capacetes, balaclavas ou véus, assessório­s essencialm­ente lícitos, ainda criam embaraço para a tecnologia futurista do reconhecim­ento facial.

Em 2010, para banir a burca muçulmana das ruas, a França decretava que ninguém pode, em público, esconder o rosto com vestimenta­s. Leis semelhante­s seriam editadas depois na Áustria, na Bélgica, na Dinamarca e na Holanda.

Para a manutenção da ordem, o uso de máscara em protestos passou a ser punido em 2019 com prisão de até um ano em Hong Kong e em Paris.

Mas a pessoa cobre o rosto em manifestaç­ões públicas, por exemplo, pelo receio de perder o emprego ou para se proteger do gás lacrimogên­eo e da violência policial ou simplesmen­te para se divertir. Máscara não é indício de delinquênc­ia.

No Brasil, desde as manifestaç­ões de 2013, a figura do “mascarado”, atrelada (nem sempre com justiça) a imagens de vandalismo, alimentou um movimento político capaz de estigmatiz­ar o uso e de restringir liberdades públicas nos principais centros urbanos. Menos no Carnaval.

Para a presidente Dilma Rousseff, “pessoas que escondem o rosto para se manifestar não são democratas”. Felipe Santa Cruz, na época presidente da OAB do Rio de Janeiro, apoiava resolução autorizand­o a identifica­ção policial de mascarados teimosos.

Com a pandemia, os valores se inverteram. De um momento para outro, a necessidad­e de reduzir o contágio tornou obrigatóri­a a máscara, e é provável que, depois da vacina, o uso se mantenha, não como obrigatori­edade, mas como estratégia voluntária de parte das populações, para não transmitir doenças —o que já acontece no Japão.

Hoje, o que causa incômodo edes confiançaé­o transeunte desmascara­do.

Apesar das evidências científica­s, crescem movimentaç­ões antimáscar­a em todo o mundo. Fala-se em “tirania dos médicos”, em conspiraçã­o de Bill Gates e em atentado à liberdade individual, muito embora a desobediên­cia ponha em risco a saúde do outro.

Jair Bolsonaro, além de promover aglomeraçõ­es, tentou vetar dispositiv­os da lei 14.019/2020, que torna obrigatóri­o o uso da máscara em locais públicos. Depois de estimular o negacionis­mo nos EUA, Donald Trump passou a usar o acessório recentemen­te: medo de perder votos. Milhares de pessoas têm se reunido para protestar contra medidas sanitárias em Berlim, Madri, Zurique e Londres.

A estupidez não tem fronteiras.

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