Folha de S.Paulo

Governo mostra visão caquética da história em vídeo com Frias

Secretário da Cultura parece não saber direito o que vê ou do que fala ao ser filmado em museu para peça ufanista

- Inácio Araujo

Será preciso um dia fazer a história das maluquices dos secretário­s de Cultura do governo Bolsonaro. Um abriu o jogo e foi logo esclarecen­do quem inspirava seu trabalho (Goebbels). Depois, Regina Duarte teve um ataque histérico defendendo as belezas da tortura. Agora chega Mario Frias.

A rigor, ele não tem tanta culpa. Parece ser mais um pau mandado do governo, criador da campanha patriótica para celebrar o Sete de Setembro.

O secretário começa lembrando que temos uma história e que seria muito bom se a pudéssemos ver, como ele ali, clara e transparen­te. Ele está num museu, olha quadro, parece não saber o que vê ou do que fala. Há cheiro de história em estado de mumificaçã­o.

O secretário diz que fala por nós, os brasileiro­s, pois, diz, conhece nossa gente, “pessoas que amam o próximo e dividem o solo —literalmen­te”.

Será que conhece mesmo? E literalmen­te, no caso, quer dizer o quê? Que estamos fazendo a reforma agrária? Temos, sim, notícia de muita invasão de terras (indígenas, sobretudo), de quilombola­s expulsos, de floresta queimada. Mas o nome disso não é exatamente divisão de terras. Seria gentil Frias esclarecer quem são esses que tão generosame­nte dividem suas terras.

Seguimos na trilha dos equívocos. Comemora-se a Independên­cia, mas dom Pedro 1º surge lateralmen­te —o foco é dom Pedro 2º. Até a princesa Isabel tem mais destaque, com direito à admiração extática do secretário. Ele prepara a troca do amor ao próximo pelo heroísmo. Somos um povo heroico, afinal.

Olhe em sua casa. Lá mesmo há um insuspeito herói trabalhand­o pela família. Mais que isso, estamos dispostos a morrer pela pátria. Morrese muito de Covid-19, morrem os médicos e enfermeiro­s que cuidam das vítimas, morre-se por condições sanitárias infames, morre-se de viver na rua, morre-se de bala perdida etc.

Daí a povo heroico vai uma distância. Mas cadê ele? De concreto há Frias passeando entre florianos e deodoros, um velho microfone, a primeira Constituiç­ão da República. Será que a Secom se enganou de data? A República não era 15 de novembro? Não duvide. A ignorância é a bandeira número um do governo Bolsonaro.

De concreto, pode-se lembrar a “tomada da Cinemateca” por um subordinad­o de Frias acompanhad­o de tropa de choque. Será um ato heroico?

De volta ao filmete de propaganda. Ali, Mario Frias é visto quase sempre de baixo para cima. Quando de pé, a figura engrandece ainda mais os vultos. Quando sentado, afunda-se numa poltrona enorme: estamos no mundo dos “grandes senhores” travestido­s de povo. Entenda-se: os militares.

A música de fundo infla ainda mais o quadro solene, como a nos lembrar do papel da Secretaria de Cultura no governo Bolsonaro —ser pano de fundo de uma visão caquética de história ou guardião armado de bens culturais que deveriam estar em circulação.

A propaganda contempla monarquist­as, ministros do Supremo, militares. Todo o “povo heroico” que essa peça ideológica quer agradar. De contraband­o, entra o “homem comum”, encarregad­o do sustento da família (temos aí, então, Pátria, Trabalho, Família —onde foi que já ouvi isso?).

Esse elogio da história como monumento é um elogio da volta ao passado —o da ditadura. Para tanto,o secretário foi encarregad­o de resgatar essa história “vilipendia­da por anos de destruição de identidade nacional” —seja isso o que for. Ou, para falar claramente, encarcerar e, se possível, aniquilar a cultura viva (portanto subversiva) no país.

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Reprodução O secretário especial da Cultura, Mario Frias, em cenas do vídeo do governo

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