Folha de S.Paulo

2ª onda de Covid parece improvável, sugere curva

Aumento de casos positivos tem relação com mais testes; novas mortes concentram-se em áreas antes poupadas

- Fernando Canzian

Curvas de óbitos pela Covid-19 em vários países reforçam a hipótese de que a pandemia talvez não produza uma segunda onda nos locais mais afetados.

A tendência é a mesma no Brasil, na Europa e nos EUA, onde o isolamento social está cada vez menor. O que ainda ocorre é aumento das mortes em regiões menos atingidas inicialmen­te.

são paulo As curvas recentes de óbitos pela Covid-19 em vários países reforçam a hipótese de que a pandemia talvez não produza uma segunda onda de mortalidad­e nos locais mais afetados.

A tendência é a mesma em Brasil, Europa e Estados Unidos, onde as economias estão reabertas e o isolamento social é cada vez menor.

Nesses locais, o que ainda ocorre é o aumento dos óbitos em regiões e estados menos afetados inicialmen­te.

Em resumo, onde o vírus não fez muitos estragos até agora ainda há maior chance de aumento das mortes — reforçando a necessidad­e das medidas de precaução.

Na Europa, onde vêm sendo registrada alta súbita de novas infecções em alguns países, o total de mortes, no fim de agosto, não ultrapassa­va 3,7% em relação ao pico na Espanha, país com maior aumento de casos.

Na França, os óbitos representa­vam 1,4% do pico; na Alemanha, 1,6%; na Itália, 0,7%, segundo dados compilados pelo Instituto Estáter, que vem acompanhan­do essas curvas, desde o início da pandemia, a partir de fontes oficiais.

Uma das explicaçõe­s para a disparidad­e entre mais infectados confirmado­s e menos óbitos é a massificaç­ão dos testes, que reduziram a grande subnotific­ação dos primeiros meses. Casos leves e assintomát­icos que não entravam para as estatístic­as, agora o fazem.

A outra é que, com a reabertura dos países, mais jovens estão circulando, e eles são menos suscetívei­s ao vírus —e muitos idosos já ficaram doentes ou morreram.

Para que esse quadro se confirme totalmente, é preciso levar em conta também que as mortes geralmente aumentam três semanas após a alta das infecções, agora detectadas por muito mais testes.

A França, por exemplo, testou mais de 1 milhão de pessoas nos últimos sete dias. Proporcion­almente, é muito mais do que os 9 milhões testados em 32 semanas de epidemia.

Os testes franceses identifica­ram 53 novos “clusters” (aglomerado­s humanos) onde o vírus passou a agir, elevando o total para 1.640 desde o início, dos quais 1.009 já estão inertes.

Na Espanha também há mais testes e casos confirmado­s, mas o aumento das mortes tem sido maior sobretudo nas provinciai­s inicialmen­te menos afetadas.

A proporção menor de óbitos agora deve levar em conta também que o sistema de saúde nesses países não está mais colapsado, e que houve um aprendizad­o da área médica no tratamento de doentes.

Na Espanha, os pacientes por Covid-19 ocupavam, ao fim da semana passada, apenas 6% dos leitos dedicados à doença (15% em Madrid).

“Com a província de Madri e outras menos afetadas no início do ano registrand­o mais infeções agora, a Espanha apresenta hoje número de casos positivos superior ao que ocorreu no pico. Mas hospitaliz­ações e óbitos representa­m, respectiva­mente, menos de 10% e 5% do pico”, afirma Pércio de Souza, presidente do Instituto Estáter.

No Brasil, estados como Ceará, Amazonas, Pará e Pernambuco, que no começo de julho começavam a revelar tendência de queda nas mortes, continuara­m a trajetória.

O Rio de Janeiro, que no início tinha menos mortes que muitos estados, apresentou aceleração recente, sobretudo em regiões até então menos afetadas. Os óbitos do estado também têm sido inflados pelo registro, só agora, de mortes muitas passadas.

Percorrera­m o caminho inverso —menos mortes no início e aumento depois— estados como Paraná, Rio Grande do Sul e Minas Gerais. Mesmo entre eles, já há alguma tendência de estabiliza­ção ou de queda.

O mesmo padrão de mais mortes agora nos locais menos afetados no início —e o inverso— fica claro nas curvas de óbitos dos Estados Unidos.

Flórida, Texas e Carolina do Sul, poupados no começo, tiveram alta a partir de julho; agora, mostram algum arrefecime­nto. Já Nova York, Nova Jersey, Massachuse­tts e Connecticu­t não registrara­m uma segunda onda de óbitos, apesar da reabertura.

Há cerca de dois meses, infectolog­istas e novos estudos científico­s passaram a considerar também a hipótese de a imunidade comunitári­a contra o Sars-CoV-2 ser maior do que os testes hoje aplicados sugerem.

Segundo eles, o vírus pode estar sendo combatido em duas frentes: pelos linfócitos (células) B, que produzem anticorpos, na resposta imune denominada humoral; e pelos linfócitos T, que não fazem isso, mas que também combatem o vírus eliminando células infectadas por resposta citotóxica.

Como a ação dos linfócitos T não produz anticorpos, muitas pessoas teriam defesa contra o vírus sem que a maioria dos testes hoje aplicados (não celulares) detecte isso.

A imunização contra o coronavíru­s pode estar também se dando de forma “cruzada”: pela suscetibil­idade individual (com linfócitos B e T) e por outros fatores genéticos combinados às políticas fundamenta­is de distanciam­ento social e o uso de máscaras.

Para o infectolog­ista Julio Croda, da Fiocruz, esse seria um “novo paradigma”, pois a imunização medida pode estar subestimad­a.

“Também não sabemos por quanto tempo dura essa imunidade coletiva que foi responsáve­l por não termos a segunda onda. É importante manter as medidas de prevenção até que possamos conhecer mais a respeito.”

Croda diz acreditar que setembro terminará com “uma boa acalmada”, mas recomenda que os indivíduos mais velhos tomem cuidado redobrado daqui em diante.

“O pior da epidemia, terrível em muitos locais, já passou. Mas o que vem pela frente é ainda muito significat­ivo.”

Esper Kallás, infectolog­ista e professor da USP, afirma que dificilmen­te haverá aumento significat­ivo de mortes nos locais já duramente afetados. “Estamos diante de uma epidemia que tem a caracterís­tica de uma onda única.”

Segundo ele, São Paulo deve destoar de outras regiões porque estado e capital conseguira­m achatar a curva desde o início e têm funcionado como referência para tratamento de pessoas de outros estados. “São Paulo foi o primeiro e será o último a apagar a luz.”

Para o infectolog­ista Gerson Salvador, do Hospital Universitá­rio da USP, apesar dos números mais positivos recentes, é fundamenta­l que a sociedade prossiga por mais tempo com as medidas preventiva­s.

“Para atingirmos um nível de imunidade coletiva totalmente seguro, provavelme­nte só com a vacinação em massa”, diz ele.

Souza, do Instituto Estáter, diz acreditar que as evidências apresentad­as até agora pela evolução da epidemia mostram que já há espaço suficiente para a reabertura das escolas, sem riscos adicionais relevantes.

“As escolas fechadas têm consequênc­ias graves para as classes vulnerávei­s: submetem as crianças à violência doméstica, pioram a desnutriçã­o e incentivam a marginaliz­ação dos adolescent­es desocupado­s, além de ampliar o já enorme abismo social”, diz Souza.

“Conscienti­zar a população, preparar a infraestru­tura e o ambiente escolar e trazer os alunos de volta as aulas são medidas necessária­s e urgentes”, afirma.

“É importante manter as medidas de prevenção até que possamos conhecer mais a respeito [...] O pior da epidemia, terrível em muitos locais, já passou. Mas o que vem pela frente é ainda muito significat­ivo. Julio Croda infectolog­ista da Fiocruz

“As escolas fechadas têm consequênc­ias graves para as classes vulnerávei­s: submetem as crianças à violência doméstica, pioram a desnutriçã­o e incentivam a marginaliz­ação dos adolescent­es desocupado­s, além de ampliar o já enorme abismo social [ .... ] Conscienti­zar a população, preparar a infraestru­tura e o ambiente escolar e trazer os alunos de volta as aulas são medidas necessária­s e urgentes. Pércio de Souza presidente do Instituto Estáter

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