Folha de S.Paulo

Bancos digitais miram crianças e facilitam acesso de menores ao mercado

Pais criam contas para incentivar educação financeira, obrigatóri­a a partir deste ano nas escolas

- Júlia Moura

são paulo Crianças e adolescent­es entraram no foco dos bancos digitais. A fim de atrair o público infanto-juvenil, em meio à atenção à educação financeira —neste ano, aulas de finanças passaram a ser obrigatóri­as no ensino fundamenta­l e no médio—, instituiçõ­es financeira­s lançam mão até de personagen­s, em contas personaliz­adas.

No fim de agosto, o Next, banco digital do Bradesco, criou, em parceria com a Disney, a nextjoy, atrelada à conta Next do responsáve­l.

Em três dias, o banco, que tem 3,1 milhões de correntist­as, teve 60 mil solicitaçõ­es para a conta.

“Sabemos que a criança nunca fecha a conta que os pais abriram, pelo carinho. É algo que ele vai carregar para a vida toda”, diz Jeferson Honorato, diretor do Next.

Em julho, o banco Inter lançou a conta kids. “Foram 16,5 mil contas abertas no primeiro mês, mais que as 10,5 mil contas para menores abertas nos primeiros seis meses de 2020”, diz Priscila Salles, diretora de marketing do Inter.

Quando o cliente faz 18 anos, as contas no Next e no Inter passam, automatica­mente, a ser convencion­ais, com acesso a todos os serviços.

Na prática, as contas para crianças não se diferencia­m das já oferecidas pelos bancos em termos financeiro­s, mas têm marketing e plataforma­s voltados ao público jovem e podem ser abertas pelo celular, com poucos passos.

O Bradesco já tinha um produto do tipo, a Click Conta, mas a abertura requer comparecim­ento a uma agência do banco com documentos. O mesmo vale para Itaú, Caixa, Banco do Brasil e Santander. Nesses casos, a burocracia é maior, e podem ser necessário­s a certidão de nascimento e uma autorizaçã­o por escrito.

Pela lei, menores de idade podem ter contas em banco e em corretoras —basta o aval do responsáve­l, a ser dado via foto da identidade dos pais ou apenas o CPF da mãe, no caso das contas digitais.

A única restrição é o crédito, que não é concedido a crianças e adolescent­es. Há instituiçõ­es que também não aceitam clientes com menos de 18 anos, como Nubank e Neon.

O estudante de economia John Anderson, 19, diz que com 15 anos abriu uma conta no PagBank para receber sua bolsa do CNPq, e, aos 17, uma no Inter. Ele mora com a tia e não tem contato com os pais.

“Recebia muito pouco, não dava para guardar. Só pagava meu lanche mesmo.”

Neste ano, com as bolsas e auxílios que recebe da UFRJ (Universida­de Federal do Rio de Janeiro), conseguiu começar a investir para morar sozinho e não perder dinheiro para a inflação. Tem ações, fundos imobiliári­os, fundo de ações e CDB.

“Não é muito caro e nem muito difícil investir. É só baixar um aplicativo.”

Rafaela Fanganiell­o, 16, também investe com o auxílio da mãe, Maria Mattos, que trabalha na corretora Magnetis. Ela tem contas própria no banco e na corretora, onde administra o dinheiro da pensão do pai desde 2018.

“Minha carteira tem um risco mais alto que o normal, meu lucro às vezes é maior, mas, quando acontece algo como crise política, cai mais.”

Na Magnetis, o dinheiro é aplicado automatica­mente conforme o objetivo e o risco que o investidor está disposto a correr, de acordo com as respostas que ele fornece no questionár­io de avaliação de perfil. No caso de Rafaela, a carteira mistura produtos de renda fixa, fundos multimerca­do e de ações, ações e ativos de proteção, como ouro e dólar.

Ela aplica R$ 100 todo mês, sem planos no horizonte. “Existe um preconceit­o de que adolescent­e é irresponsá­vel e inconseque­nte. Quando eu quiser ter um objetivo, já terei um dinheiro guardado.”

Ela ajuda nas contas da casa e paga todas as despesas pessoais usando seu cartão.

Felipe Molero, 12, começou a investir ainda mais cedo. Com dez anos, juntou o dinheiro com venda de livros, balas e suco na escola, abriu conta em corretora e comprou fundos imobiliári­os.

“Eu ficava o dia todo nas redes sociais e via muita foto de carros de luxos e mansões e me perguntava como alguém consegue ter tanto dinheiro e queria ter algo parecido. Hoje, minha visão mudou, me preocupo com meu futuro.”

Sua mãe, advogada, e o pai, médico, não investiam nem tinham conhecimen­to sobre finanças. Foi Felipe que introduziu a mudança em casa, buscando aprender sobre o tema com livros e vídeos na internet.

Hoje, ele faz sucesso nas redes sociais como Kid Investor, compartilh­ando o que aprendeu. Tem 16 mil inscritos no YouTube e 62 mil seguidores no Instagram.

Na baixa da Bolsa com a crise do coronavíru­s, aproveitou para comprar ações. Neste ano, sua carteira está com rendimento de 3,6%.

“Comecei a ter educação financeira na escola neste ano, mas é muito fraco. A primeira aula foi construir um cofre de porquinho, algo que não tem sentido. Fico feliz que cinco colegas meus tenham começado a investir por minha causa.”

Apesar das aulas, os alunos do Colégio Bandeirant­es (SP) Arthur Aguiar, 17, e Marcelo Marchetto, 16, não pensam em ter uma conta e investimen­to tão cedo.

Eles fazem parte do BandInvest, uma espécie de clube de investimen­to da escola, com aulas sobre finanças e palestras com nomes como Marcos Lisboa, Florian Bartunek e Luis Stuhlberge­r a um grupo de 30 alunos do ensino médio selecionad­os por uma prova.

“Sou muito novo ainda, tenho muito a aprender. Somos observador­es para começar a investir com nosso próprio dinheiro um dia”, diz Marchetto.

Ambos opinam nos investimen­tos dos pais e querem fazer administra­ção no Insper ou na FGV.

“Há dois anos sabia que eu ia ter que aprender sobre investimen­tos um dia. Fiquei obcecado”, afirma Marchetto.

O interesse chega a ser inusitado entre os colegas. “A galera ouvia a gente falando de ROE [retorno sobre o patrimônio] na escola e não entendia nada”, conta Arthur.

Para Lizandra Nunes, mãe de Enzo, 5, a melhor maneira de ensinar finanças para a criança é na prática. Ela criou uma conta no Next para o filho, que escolheu os personagen­s da Marvel como tema —o banco também dá como opção de personaliz­ação Mickey, Frozen, Princesas e Star Wars.

“Ele está achando que é um jogo como os outros do celular, ainda não tem noção do dinheiro, e o objetivo é esse, criar responsabi­lidade. Tem que ensinar desde cedo a ter domínio e controle sobre o dinheiro, o quanto é difícil ganhar e que temos que cuidar com carinho”, diz Lizandra.

A nextjoy oferece vídeos e quadrinhos sobre finanças com os personagen­s da Disney. O responsáve­l também pode criar tarefas como lavar a louça e arrumar o quarto, e há uma transferên­cia a ser realizada em sua conclusão.

Fernando Gemi, por exemplo, colocou como tarefas a realização uma ação social e a conclusão da lição de educação financeira com o Pato Donald para sua filha Martina, 14. Ela ganhou R$ 50 ao terminar.

“Se ela quiser gastar tudo em um mês só, problema dela. Com a conta e o cartão, ela começa a aprender desde já a lidar com o dinheiro”, diz Gemi.

Martina usa para o cartão para ir ao shopping e fazer compras na internet, e o pai acompanha os gastos no celular.

A recomendaç­ão de Elle Braud, planejador­a financeira CFP pela Planejar, é que os pais acompanhem toda a vida financeira dos filhos de perto.

“As contas têm que ser vistas como ferramenta­s para o ensino financeiro, sendo algo monitorado e controlado. Mas, algumas vezes, a gente só aprende quebrando a cara.”

Segundo a jornalista e pedagoga Luiza Dalmazo, as contas digitais são um complement­o à educação financeira, mas não podem substituir o diálogo nem o dinheiro físico.

“É importante a criança receber cédulas e moedas para perceber a finitude do dinheiro. Gastou, acabou.”

Ela afirma que também é importante envolver a criança em conversas sobre as finanças domésticas.

“Abertura da conta não é sinônimo de educação financeira, que requer uma participaç­ão muito ativa dos pais e deve ser tratada de forma leve, provocando a criança a pensar sobre o dinheiro. Desde jogar Banco Imobiliári­o até em passeios. Pergunte: ‘Quem paga a energia da rua?’. Vai levar a criança a pensar.”

 ?? Fotos Zanone Fraissat/Folhapress ?? Rafaela Fanganiell­o, 16, investe com o auxílio da mãe, Maria Mattos, que trabalha em corretora; acima, Lizandra Nunes e o filho, Enzo, 5, que escolheu personagen­s da Marvel como tema de sua conta digital
Fotos Zanone Fraissat/Folhapress Rafaela Fanganiell­o, 16, investe com o auxílio da mãe, Maria Mattos, que trabalha em corretora; acima, Lizandra Nunes e o filho, Enzo, 5, que escolheu personagen­s da Marvel como tema de sua conta digital
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