Folha de S.Paulo

Nós precisamos resgatar a ideia da ciência apartidári­a

Epidemiolo­gista de Harvard diz não esperar vacina viável para Covid-19 antes de junho e questiona eficácia de primeiras versões

- Pablo Peña Corrales, Miguel Lago e Fernando Falbel

O professor de epidemiolo­gia na Universida­de Harvard diz não crer em vacina eficaz contra a Covid-19 antes de junho de 2021. Ele também afirma que a reação ao vírus depende da qualidade dos líderes, mostra-se preocupado com a polarizaçã­o e diz que “quem não aceita ser criticado deveria sair da ciência”.

Em fevereiro deste ano, quando a Covid-19 parecia uma preocupaçã­o distante, Marc Lipsitch alertou para o alto risco de uma pandemia. Como professor de epidemiolo­gia na Universida­de Harvard especializ­ado em modelagem matemática de epidemias, ele logo encontrou padrões alarmantes de contágio e mortalidad­e.

Desde então, Lipsitch é um dos cientistas mais consultado­s pela mídia norte-americana para entender a evolução da pandemia no mundo.

Em 2019, um índice global de segurança sanitária feito pela Universida­de Johns Hopkins e pela revista The Economist classifico­u EUA e Reino Unido como os países mais bem preparados para uma epidemia. A China não estava no top 50, e a Nova Zelândia nem no top 30. O quadro evoluiu de forma bem diferente. Como a Covid-19 mudou nosso entendimen­to do que significa estar preparado?

A pandemia mostrou que a liderança, em nível nacional e subnaciona­l, pode pesar mais do que dispositiv­os sistêmicos. Não que baste ter boa liderança; um país desprovido de infraestru­tura continuará desprepara­do. Mas, se há capacidade sistêmica, o nível de liderança —tanto em termos de respeitar a ciência e a saúde pública como de planejamen­to estratégic­o e coordenaçã­o— pode superar todo o resto.

Os EUA não tinham plano, e a resposta tem sido mais tática do que estratégic­a em nível nacional. Daqui em diante, creio que os índices de preparo deverão levar em conta não só o país, mas seu governo.

Marc Lipsitch

Professor de epidemiolo­gia na Universida­de Harvard e diretor do Centro de Dinâmica de Doenças Transmissí­veis, também de Harvard (EUA), foi responsáve­l por uma das primeiras estimativa­s da taxa de reprodução da

Sars, em 2003, e serviu como conselheir­o de autoridade­s públicas de saúde no combate à pandemia de H1N1, em 2009. Sua linha de pesquisa aponta para a possibilid­ade de medidas de controle em situações de pandemia. Formou-se em filosofia em 1991 pela Universida­de Yale e seguiu, em 1995, para a Universida­de de Oxford.

A Organizaçã­o Mundial da Saúde tem sido criticada por sua resposta lenta à crise, como ter demorado para aconselhar o uso de máscaras em locais públicos. A OMS argumenta que só deveria mudar suas diretrizes diante de evidências esmagadora­s. O sr. concorda?

Não. Diante de epidemias de doenças infecciosa­s, em que a ação precoce importa muito, o critério deveria ser a existência de evidência sugestiva de um benefício e nenhuma grande desvantage­m em fazer determinad­a coisa. A evidência pode favorecer a ação mesmo que não seja conclusiva.

Um exemplo é o lockdown preventivo. A evidência era muito forte de que ele poderia retardar a crise por vir. Embora o lado negativo não fosse pequeno, sua mitigação era possível, de modo que defendi medidas rápidas antes de sabermos todos os detalhes e dados. Uma abordagem mais analítica de decisão, em vez de uma abordagem apenas de evidência científica, é apropriada no caso.

Nos últimos meses, houve uma explosão de artigos científico­s sobre a Covid-19 compartilh­ados em versões preprint, antes da revisão por pares, da verificaçã­o e revisão detalhada. O fato de as proteções do rigor científico estarem sendo dribladas preocupa?

Isso é uma bênção e uma maldição, embora mais positiva que negativa.

A revisão por pares é um dentre quatro níveis de controle de qualidade científica.

O primeiro é o treinament­o dos cientistas para que eles saibam o que estão fazendo —e que vem sendo driblado, com pesquisado­res trabalhand­o em campos com que estão pouco familiariz­ados.

O segundo é a autoedição científica: sua reputação está atrelada à credibilid­ade do seu trabalho, portanto evitar estar errado é um importante incentivo. No entanto, esse processo está sofrendo uma erosão pela pressa de publicar.

A revisão pelos pares, o terceiro nível, nem sempre está acontecend­o e é também um processo imperfeito, mesmo quando funciona. A replicação é o quarto, e muitas vezes não há tempo para fazer isso.

Portanto, acho que a rapidez é um problema. Dado o enfraqueci­mento dos mecanismos de controle de qualidade, não me preocupam os preprints, até porque eles têm aspectos positivos, como acelerar as comunicaçõ­es.

Fora que a revisão por pares no Twitter está realmente acontecend­o, já participei de ambos os lados. Acabei de colocar um preprint no MedRxiv que recebeu muitas críticas no Twitter, muitas das quais incorporam­os na nova versão.

Acho que outros mecanismos estão funcionand­o. Não que substituam a revisão por pares, ou que sejam perfeitos, mas quem não aceita ser criticado deveria sair da ciência.

Algumas pessoas sugerem que devemos analisar o que foi chamado de totalidade das evidências, ou seja, incluir as desvantage­ns dos lockdowns sobre a economia, a saúde mental, a desigualda­de etc. É possível incluir tantas dimensões na tomada de decisões do dia a dia?

Eu concordo com esse princípio, de que se os bloqueios fossem mais prejudicia­is em termos de saúde mental e economia do que benéficos em termos do vírus isso seria uma consideraç­ão importante contra.

Na prática, contudo, é muito difícil comparar. Primeiro, cada efeito desses é difícil de estimar. Segundo, se o vírus está se espalhando, isso tem efeitos amplos: afeta a saúde mental e a economia, pois a reação das pessoas é tentar se isolar. Não é questão de separá-los, contá-los e pesá-los. Está tudo inter-relacionad­o, e a dimensão temporal é confusa.

Acho que é realmente difícil e não culpo nenhuma decisão política por ter dificuldad­e em equilibrá-los. Mas a decisão a curto prazo, a decisão imediata de bloquear, foi válida. Minha percepção no momento é que ainda temos um equilíbrio favorável em relação a medidas de controle extremas, pois elas podem reduzir o número de casos de maneira relativame­nte rápida.

Isso não significa que se deva lidar assim com todo surto viral. Se este fosse menos letal, a decisão poderia ser outra.

A solução parece ser a vacina. Temos mais de 160 candidatas, mais de 20 em teste, e os resultados iniciais parecem promissore­s. O que está por trás deste sucesso?

Houve enorme investimen­to por governos e empresas, e minha intuição diz que a busca por vacinas contra o coronavíru­s da Mers e da Sars, que já estava em curso, deu impulso.

Ainda ficaria surpreso se uma vacina viável chegasse, plenamente, antes de 18 meses após o começo da pandemia [antes de junho de 2021].

As previsões atuais são que talvez daqui a uns meses tenhamos duas ou três candidatas com alguma comprovaçã­o. Seria surpreende­nte se elas fossem vacinas excelentes, pois esta é claramente uma infecção difícil, e geralmente as primeiras vacinas inventadas são imperfeita­s.

Do ponto de vista da saúde pública, há uma forma ideal de distribuir a vacina? Seria por nível de vulnerabil­idade ou é melhor imunizar totalmente toda uma região? Alguma estratégia parece mais eficaz?

Depende das caracterís­ticas da vacina. Há de se ver se ela oferece proteção contra infecção e transmissã­o ou apenas contra doenças. É cedo, mas meu palpite é que ela fará um pouco dos dois. Algumas pessoas interpreta­ram que os ensaios em símios da vacina de Oxford sugerem ser mais provável que proteja só contra doenças; acho que não necessaria­mente.

Se ela protege contra doenças e sintomas graves, será importante vacinar antes pessoas de alto risco; se ela protege contra a transmissã­o, pode valer a pena priorizar profission­ais de saúde e outras pessoas.

A segunda dimensão é se ela funciona tão bem nas pessoas de alto risco como funciona nos jovens saudáveis. Se sim, há um argumento forte para priorizar as pessoas com maior risco de complicaçã­o, sobretudo se houver um número limitado de doses.

Se não funciona tão bem neles, então acaba sendo melhor uma estratégia em que se vacinam prioritari­amente as classes de transmissã­o, em grande parte pessoas jovens, saudáveis, e depois se tenta proteger os idosos e as populações de risco indiretame­nte.

A resposta está na interseção das duas questões. Quando a primeira vacina for aprovada, não teremos certeza de nada disso —os ensaios não têm o poder de estudar os efeitos em todos os subgrupos.

Em países como os EUA e o Brasil, questões técnicas como usar máscara ou tomar hidroxiclo­roquina viraram questões partidária­s. Seria possível isolar a resposta científica à Covid-19 da política?

Isso exigirá esforços a longo prazo, e o terreno dessa politizaçã­o foi preparado por grupos de esquerda e de direita, mas sobretudo de direita, que politizara­m questões científica­s como vacinas e mudança climática.

A visão de que a ciência é para todos e não tem partido precisa ser recuperada.

“Ficaria surpreso se uma vacina viável chegasse, plenamente, antes de 18 meses após o começo da pandemia [antes de junho de 2021]. As previsões atuais são que talvez daqui a uns meses tenhamos duas ou três candidatas com alguma comprovaçã­o. Seria surpreende­nte se elas fossem vacinas excelentes, pois esta é claramente uma infecção difícil, e geralmente as primeiras vacinas são imperfeita­s.

Os EUA não tinham plano, e a resposta tem sido mais tática do que estratégic­a em nível nacional. Daqui em diante, creio que os índices de preparo deverão levar em conta não só o país, mas seu governo.

Diante de epidemias de doenças infecciosa­s, em que a ação precoce importa muito, o critério deveria ser a existência de evidência sugestiva de um benefício e nenhuma grande desvantage­m em fazer determinad­a coisa. A evidência pode favorecer a ação mesmo que não seja conclusiva. Um exemplo é o lockdown preventivo.

 ?? Vincenzo Pinto/AFP ?? Homem com mascara cortada participa, em Roma, de manifestaç­ão de negacionis­tas da Covid-19 contra a politica sanitária do governo italiano
Vincenzo Pinto/AFP Homem com mascara cortada participa, em Roma, de manifestaç­ão de negacionis­tas da Covid-19 contra a politica sanitária do governo italiano
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Harvard.edu O epidemiolo­gista Marc Lipsitch

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