Folha de S.Paulo

Extinção do abono salarial atingiria mais vulnerávei­s

Mais vulnerávei­s estão entre os maiores beneficiár­ios do programa, que Guedes queria extinguir para criar Renda Brasil

- Bernardo Caram e William Castanho

O fim do abono salarial, discutido pelo governo, prejudicar­ia trabalhado­res formais mais vulnerávei­s, segundo a consultori­a IDados. Os mais atingidos seriam negros, mulheres, jovens e os de baixa escolarida­de. O abono, que varia de R$ 88 a R$ 1.045, é pago a trabalhado­res formais que ganham até dois salários mínimos.

brasília Levado ao centro do debate da criação do Renda Brasil, o fim do abono salarial prejudicar­ia trabalhado­res formais mais vulnerávei­s. A conclusão consta em levantamen­to da consultori­a IDados, apresentad­o à Folha.

A base do estudo é a PnadCovid (Pesquisa Nacional de Amostragem Domiciliar Covid-19), do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatístic­a). A extinção do benefício atingiria mais negros, mulheres, jovens e trabalhado­res de baixa escolarida­de.

A estimativa é do pesquisado­r Bruno Ottoni, do IDados e do Ibre (Instituto Brasileiro de Economia), da FGV (Fundação Getulio Vargas).

A equipe do ministro Paulo Guedes (Economia) elabora um programa para substituir o Bolsa Família. O objetivo é ampliar a cobertura assistenci­al, sobretudo para atender uma parcela hoje socorrida pela auxílio emergencia­l.

O benefício criado em abril, e no valor de R$ 600 até agosto, seguirá até dezembro, com mais quatro parcelas de R$ 300. Ao todo, o programa de ajuda a informais na crise causada pela Covid-19 deve custar R$ 322 bilhões.

O presidente Jair Bolsonaro (sem partido) cobra do time de Guedes um redesenho do Bolsa Família —uma marca de gestões petistas.

A ideia é ampliar o programa social e mudar o nome para Renda Brasil.

Em cenário de grave aperto fiscal, o embate gira em torno da fonte dos recursos. A equipe econômica argumenta que não há margem no Orçamento para ampliar a assistênci­a sem fazer cortes em outras áreas.

O plano é criar o Renda Brasil a partir da fusão das verbas de abono salarial, salário família, seguro-defeso, Farmácia Popular e Bolsa Família, entre outros programas federais. O impasse foi lançado dentro do próprio governo.

No dia 26 de agosto, insatisfei­to com a proposta de Guedes, o presidente anunciou a suspensão do anúncio do Renda Brasil. “Não posso tirar de pobres para dar para paupérrimo­s”, disse, em evento em Minas Gerais.

Bolsonaro tem razão, segundo o pesquisado­r do IDados e do Ibre. “Concordo com a frase do presidente, ao dizer que, de fato, o abono salarial não é uma política pública particular­mente direcionad­a a grupos ricos.”

O abono é uma espécie de 14º salário pago a trabalhado­res com carteira assinada. O benefício, que varia de R$ 88 a R$ 1.045 (um salário mínimo), atende quem ganha até dois salários mínimos.

O levantamen­to de Ottoni mostra que, entre os trabalhado­res com carteira assinada, os beneficiár­ios do abono são mais vulnerávei­s. No entanto, eles são menos vulnerávei­s do que empregados sem registro.

A estimativa com base em microdados do primeiro trimestre deste ano mostra que, dos atendidos pelo abono, 27% têm baixa escolarida­de (ensino fundamenta­l ou menos), 45,8% são mulheres, 56,7%, negros, e 33,4%, jovens.

“São vulnerávei­s porque são pessoas que têm mais dificuldad­e de se inserir no mercado de trabalho. São grupos de taxa de desemprego mais alta e renda média mais baixa”, afirma Ottoni.

A Pnad não permite apurar um critério do abono: ter cinco anos de carteira assinada. Porém, Ottoni diz que os dados se aproximam das estimativa­s oficiais, o que permite chegar às conclusões.

O pesquisado­r considera ainda os dados do primeiro trimestre mais compatívei­s para uma análise estrutural do mercado de trabalho. Os dados do segundo trimestre, de acordo com ele, em razão da crise da Covid, são atípicos.

“O governo afirma que há jovens de família rica que acabam recebendo. Pode até ter, mas, dada essa análise, não parece que esse tipo de indivíduo seja a norma dentro do abono, parece que é muito mais a exceção.”

Os potenciais beneficiár­ios do abono chegam a 22,6 milhões de trabalhado­res, de acordo com o pesquisado­r. A Pnad captou 35,9 milhões de empregados com carteira assinada no país naquele período.

A proporção dos grupos considerad­os vulnerávei­s é menor quando se observa todo o universo de trabalhado­res formais. Do total de registros formais, 23,1% têm baixa escolarida­de, 43,6% são mulheres, 51,5%, negros, e 29,7%, jovens.

Porém, a prevalênci­a desses grupos entre os empregados sem carteira assinada e que, portanto, não têm direito ao abono é maior.

Um exemplo de trabalhado­r sem registro é o doméstico diarista. Já um vendedor ambulante, que também é informal, entra no grupo “por conta própria” e está fora da comparação.

De acordo com a Pnad, o grupo sem carteira assinada representa­va 17,6 milhões de pessoas. Ao compará-los com beneficiár­ios do abono salarial, vê-se que a afirmação de Bolsonaro está correta.

O levantamen­to de Ottoni mostra que, nesse grupo, 42,2% têm baixa escolarida­de, 51,6% são mulheres, 62,6%, negros, e 34,8%, jovens.

“Há maior prevalênci­a de baixa escolarida­de entre os sem-carteira, então, o pessoal do abono já não é tão vulnerável assim. Tem muito mais negros sem carteira assinada do que no abono”, afirma Ottoni.

Ao propor a focalizaçã­o do abono e outros programas para criar o Renda Brasil, a equipe de Guedes se baseou em um estudo produzido pelo Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) que propõe a unificação de programas sociais.

O documento, produzido no ano passado pela fundação vinculada ao Ministério da Economia, afirma que o abono não atende às famílias mais vulnerávei­s.

Segundo o estudo, enquanto 77% dos recursos do Bolsa Família se destinam ao terço mais pobre da população, apenas 16% do abono é direcionad­o a essas famílias.

Ao fazer a observação pelo sentido inverso, os pesquisado­res do Ipea apontam que 39% do orçamento do abono acaba nas mãos do terço mais rico da população.

Na avaliação do estudo, a unificação de Bolsa Família, salário-família, abono salarial e deduções do Imposto de Renda teria um impacto duas vezes maior sobre a redução da desigualda­de e da pobreza do que o formato existente hoje.

“É possível cobrir todas as crianças com um benefício universal, aumentar a cobertura entre os pobres e ter o dobro do impacto sobre a pobreza e a desigualda­de, sem gastar um único centavo a mais”, argumentam os pesquisado­res do Ipea.

Esses dados foram usados internamen­te no governo para formular e propor a criação do Renda Brasil a partir da unificação de ações existentes hoje.

O fim do abono, que tem custo anual estimado em R$ 18 bilhões, era a principal aposta do Ministério da Economia para incrementa­r o novo programa social.

Após a crítica pública de Bolsonaro, no entanto, o ministro Paulo Guedes reconheceu que o raciocínio do presidente sobre o programa está correto.

“O salário de 75% dos brasileiro­s na CLT (Consolidaç­ão das Leis do Trabalho) é abaixo de 1,5 salário mínimo. Então, realmente, é tirar da base de trabalhado­res e passar para quem está desemprega­do, que é pior ainda”, afirmou o ministro no dia 28 de agosto.

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