Folha de S.Paulo

Trump aposta em dificultar ida às urnas

Pedido de Trump para eleitor votar duas vezes, prática ilegal, é visto por democratas como tentativa de minar sistema

- Lúcia Guimarães

O principal foco de Donald Trump na busca pela reeleição parece ser tentar dificultar o acesso, especialme­nte dos negros, às urnas. EUA têm histórico nesse sentido.

nova york Quando Donald Trump pediu aos eleitores da Carolina do Norte que votassem duas vezes pelo correio, ele fez mais do que incitar o público a cometer um crime previsto na lei. Ele recorreu ao que parece ser seu principal foco na busca pela reeleição —suprimir o voto.

O presidente americano fez o comentário numa visita ao estado na quarta-feira (2), quando sugeriu que, se conseguiss­em votar duas vezes, poderiam confirmar que é fácil cometer fraude eleitoral.

Desde a campanha de 2016, Trump espalha mentiras sobre fraude eleitoral e deixou claro que considerav­a sua eventual derrota uma prova de ilegitimid­ade do sistema.

Não há dúvida de que a eleição presidenci­al do dia 3 de novembro sofre ataques em múltiplas frentes e tem o potencial de ser a mais questionad­a do último meio século. Mas os Estados Unidos não têm história de fraude eleitoral. Estudos após estudos mostram que o voto fraudulent­o, seja pelo correio ou em pessoa, é uma exceção rara.

O país tem, no entanto, uma história de supressão de voto indissociá­vel de sua questão racial. Depois da Guerra Civil, o Congresso aprovou a 15ª emenda da Constituiç­ão, que proibia negar o direito ao voto com base em “raça, cor ou condição prévia de servidão” em toda a Federação.

Estados do Sul escravocra­ta, derrotado na guerra, começaram, então, a passar leis para dificultar o acesso de negros às urnas. Faziam exigências variadas, como prova extra de identidade e testes bizarros de alfabetiza­ção que continuara­m pelo século 20.

Até 1964, ano em que o Ato de Direitos Civis baniu a segregação racial nos EUA, a Louisiana aplicava um teste escrito com questões impossívei­s de responder como “Imprima a palavra voto de cabeça para baixo, mas na ordem correta”.

É mais fácil obstruir o direito ao voto em eleição nacional num país cujo sistema eleitoral é dependente dos estados —são eles que controlam a infraestru­tura e a apuração eleitoral.

Nas últimas décadas, estados com Poder Legislativ­o de maioria republican­a usaram um sofisticad­o repertório de leis locais e decisões do Poder Executivo para desencoraj­ar minorias a votar, já que o voto não é obrigatóri­o no país.

Mas foi no governo do primeiro presidente negro da história que a Suprema Corte desferiu um golpe decisivo contra o direito de voto das minorias.

Numa decisão aprovada por 5 votos a 4 em 2013, meses após a reeleição de Barack Obama, a corte autorizou vários estados, a maioria do Sul, a elaborar leis eleitorais sem aprovação prévia do governo federal. A decisão, na prática, invalidou o efeito do histórico Ato de Direitos Civis no processo eleitoral.

A afirmação feita por John Roberts, o presidente da Corte, ao justificar o voto da maioria, demonstra uma cegueira dolorosa se relida neste trágico ano marcado por assassinat­os de negros pela polícia, mortes desproporc­ionais de negros e latinos na pandemia do coronavíru­s e pela crescente ousadia da militância por supremacia branca. Roberts escreveu, otimista, em 2013: “Nosso país mudou”.

O jornalista Ari Berman publicou, em 2015, um dos mais elogiados trabalhos recentes sobre a supressão de voto nos EUA. Ele é autor de “Give Us the Ballot: The Modern Struggle for Voting Rights in America” (Deem-nos a cédula: a luta moderna pelo direito ao voto na América). O livro narra em detalhe os esforços de retaliação racial nas urnas a partir de 1965.

Berman destaca, numa conversa por telefone com a Folha, a reversão de papéis ocorrida no país. Foram democratas do Sul que primeiro implementa­ram uma agenda de obstrução do voto de negros.

A supressão do voto só se tornou uma bandeira republican­a a partir dos anos 1960, com a chamada Estratégia do Sul —que consistia em explorar o ressentime­nto dos eleitores democratas brancos e foi ativamente encorajada por Richard Nixon, eleito em 1968.

“A pandemia já torna esta eleição um grande desafio”, diz Berman. “A redução do número de locais de votação é um problema real.”

Ele vê sinais vermelhos em estados em transforma­ção demográfic­a como Texas e Geórgia, governados por republican­os, que dificultam a burocracia do registro de novos eleitores, uma população cada vez mais composta por minorias raciais.

O autor considera nefasto o papel exercido pelo secretário de Justiça, William Barr, considerad­o um dos mais servis a um presidente a ocupar a função. “Ele espalha mensagens que confundem, como a ideia de que republican­os não gostam de votar pelo correio. Não é verdade. Eleitores rurais e idosos, que são um segmento mais conservado­r, votam em grande número pelo correio”, explica.

Berman acredita que o Partido Democrata está preparado para o pior. Com a esperada lentidão maior da apuração deste ano, ele prevê uma enxurrada de ações judiciais nos estados movidas pelos dois partidos.

Donald Trump recebeu 8% do voto negro em 2016, contra 88% de Hillary Clinton. Neste ano, o apoio de Trump entre eleitores negros se manteve abaixo de 10%. Entre eleitores não registrado­s como independen­tes (sem partido), 98% dos negros americanos se declararam democratas numa pesquisa recente.

Há farta evidência de que atores estrangeir­os, especialme­nte o russo Vladimir Putin, cujo governo sabotou com sucesso a campanha de sua nêmese Hillary Clinton, em 2016, usam o ecossistem­a digital para interferir na eleição presidenci­al americana.

Dois terços das postagens no Facebook feitas por trolls a serviço da inteligênc­ia russa, naquele ano, tinham como alvo os negros, encorajand­o especialme­nte a abstenção. Mas o poder de Putin não se compara ao poder de autossabot­agem da democracia constituci­onal mais antiga do mundo.

 ?? Logan Cyrus - 4.set.20/AFP ?? Homem arruma caixa com pedidos de voto por correio na Carolina do Norte
Logan Cyrus - 4.set.20/AFP Homem arruma caixa com pedidos de voto por correio na Carolina do Norte

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil