Folha de S.Paulo

Farinha e bacharéis

Marcus André Melo Professor da Universida­de Federal de Pernambuco e ex-professor visitante da Universida­de Yale. Escreve às segundas

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Em “Sobrados e Mocambos” (1936), Gilberto Freyre menciona um senador do Império que propunha que se mandasse para o Pará “carne, farinha e bacharéis”.

Freyre acrescenta­va que o imperador depositava mais confiança “nos bacharéis que administra­ssem juridicame­nte as províncias e distribuís­sem corretamen­te a justiça do que em socorros de carne e farinha aos povos oprimidos”. Os socorros eram “precários e efêmeros”; os bacharéis teriam efeito sustentáve­l. Freyre —cujo nascimento ocorreu há exatos 120 anos— estava certo.

Freyre lembra também que o bacharel aparecera antes. Foram os jesuítas “que tinham dado à colônia ainda sombreada de Mato Grosso —a terra inteira por desbravar, índios nus quase dentro das igrejas, de olhos arregalado­s para os padres que diziam missas; cobras caindo do telhado por cima das camas ou enroscando­se nas botas dos colonos— os primeiros bacharéis”.

Muitos estudavam na Europa e, ao voltar, formaram o que chamou “uma aristocrac­ia da toga”; e isso em condições inusitadas: “à sombra de mangueiras de sítio e entre macacos amansados”.

O bacharel traria consigo o Estado para onde este inexistia; instituiçõ­es para o Estado da natureza; o antídoto contra a violência, o arbítrio e o mandonismo local.

São duas as grandes questões que o país enfrentava e ainda o faz: pobreza e o primado da lei. Mas esta última era vista como pré-condição da eliminação sustentada da primeira: a lei e seus agentes criam condições para a prosperida­de e a liberdade. Esta é a conclusão a que chegam também Daron Acemoglu e James Robinson, em “The Narrow Corridor”, a análise recente mais instigante sobre o assunto.

As razões do fracasso histórico do projeto de regime igualitári­o baseado no império da lei —“administra­ção e distribuiç­ão correta da justiça”, diria Freyre— são tema vasto que não pode ser tratado aqui. Mas o progresso ocorrido desde 1988 tem sido importante: as instituiçõ­es judiciais e seus agentes passaram a desfrutar de autonomia e independên­cia inéditas. E nunca tantos foram punidos por desmandos. Nem tudo é positivo, mas o saldo líquido de sua atuação em um quadro sistêmico de predação é francament­e positivo.

Os governos nas últimas décadas têm entregue “carne e farinha” —na forma contemporâ­nea de programas de transferên­cia de renda. Eles importam muito, mas a chave para a criação de uma sociedade próspera e inclusiva continua sendo de ordem institucio­nal.

O combate aos desmandos e à corrupção tem sofrido reveses. O arranjo tenebroso em curso, pelo qual há um “trade off” entre a expansão de tais programas e interrupçã­o no combate a corrupção, é retrocesso grave.

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