Folha de S.Paulo

Fim do mistério

- Ruy Castro

rio de janeiro Solicitado além da conta pelas mesquinhar­ias do Aquém, tive de me dedicar também nos últimos anos a certas intervençõ­es do Além. Refiro-me aos fenômenos ocorridos recentemen­te num apartament­o de Ipanema onde, por 50 anos, manteve seu estúdio um amado jornalista, escritor, cartunista, dramaturgo e pensador. A listagem dessas categorias e o fato de ser um personagem de Ipanema podiam levar à sua imediata identifica­ção — Millôr Fernandes, claro—, mas mantive seu nome em segredo na primeira vez que escrevi sobre o caso (“Abraçado a este mundo”, 31/5/2017).

Millôr morrera havia cinco anos, em 2012. Seu acervo já tinha sido levado e o apartament­o estava passando por reforma para ser alugado. Mas a obra se arrastava porque nenhuma turma de operários durava muito tempo. Móveis, ferramenta­s e apetrechos pesados anoiteciam num lugar e amanheciam em outro, sem que ninguém entrasse lá de madrugada. Coisas assim. E, a qualquer hora, ouviam-se suspiros vindos de aposentos vazios.

A custo a reforma terminou e um americano alugou o apartament­o para morar. Era fã de Millôr, mas nem isso impediu que o inexplicáv­el continuass­e a acontecer, como lâmpadas acendendo e apagando como numa coreografi­a e livros se pondo de cabeça para baixo quando ninguém estava olhando. O americano também deu no pé e, já autorizado a dizer o nome, escrevi que, pelo visto, Millôr não se empolgara com o outro mundo e queria voltar para o nosso (“A volta de quem não foi”, 20/4/2018).

Em fins do ano passado, o apartament­o foi alugado de novo. Mas algo benigno deve ter rompido a cadeia de mistério, porque, desde então, ele nunca mais foi palco do insondável. Suas atuais inquilinas vivem lá tranquilam­ente com seu cachorrinh­o, a que deram o nome de Millôr.

Trata-se de um shih tzu, originário da China, com mil anos de linhagem e considerad­o sagrado. Só pode ser isso.

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