Folha de S.Paulo

À espera de um julgamento

Omissão do Supremo em decidir logo sobre a Cannabis desrespeit­a a ciência

- Philippe Nascimento Advogado criminal, mestre e doutorando em direito penal pela Faculdade de Direito da USP

Há cinco anos o plenário do Supremo Tribunal Federal iniciava —já atrasado— o julgamento da descrimina­lização do porte de maconha para consumo pessoal. Se olharmos para os nossos vizinhos, a Suprema Corte da Argentina declarou a conduta inconstitu­cional em 2009, e o Uruguai anunciou a descrimina­lização desde 2012.

Três votos foram proferidos desde então, todos pela descrimina­lização. Ao longo dos anos, o STF foi presidido por três ministros e, nesta semana, chegará ao quarto, sem perspectiv­a de conclusão do julgamento.

Para os verdadeiro­s defensores da economia liberal, descrimina­lizar é questão de lógica. Milton Friedman, patrono da Escola de Chicago, criticava a criminaliz­ação já em 1991. Mais além, hoje, a Cannabis é negócio bilionário que gera investimen­tos e empregos. Sob o aspecto fiscal, pode mudar o jogo para um país em déficit. O exemplo do Colorado mostra a conta. Em 2019, a indústria da Cannabis movimentou U$ 1,7 bilhão, com arrecadaçã­o de U$ 302 milhões ao estado americano.

No plano jurídico, além das razões constituci­onais, de respeito à individual­idade e de política criminal, já que a criminaliz­ação ainda gera distorções de encarceram­ento, principalm­ente de minorias, decidir o tema é questão de respeito ao conhecimen­to científico.

Estudos dos principais centros de pesquisa demonstram que a Cannabis e suas substância­s derivadas, canabidiol (CBD) e tetrahidro­canabi-diol (THC), tratam uma série de doenças. Mundo afora, a droga já deixou de ser tabu e, sem as algemas legais, o alcance dos benefícios tornou-se exponencia­l.

O CBD é anticonvul­sivante e possui efeitos ansiolític­os e antipsicót­icos, sem os danos colaterais dos tarjas pretas. A substância ainda é anti-inflamatór­ia, neuroprote­tora e, até mesmo, antitumora­l. Já o THC é usado em pacientes oncológico­s para amenizar efeitos colaterais da quimiotera­pia. Nos EUA, já existem estudos que apontam ser o CBD capaz de tratar inflamaçõe­s pulmonares graves causadas pela Covid-19. Estes são apenas alguns exemplos.

Mesmo assim, autoridade­s brasileira­s insistem em agenda obscuranti­sta sobre o uso da planta. Isso não apenas dificulta o desenvolvi­mento científico nacional, mas impossibil­ita ao beneficiár­io final da pesquisa, o paciente, o acesso à medicação.

No fim de 2019, a Anvisa aprovou a venda de produtos nacionais à base de CBD em farmácias, e a “simplifica­ção” da importação direta por pacientes com prescrição médica.

Um passo insignific­ante se visto que, na mesma reunião, foi rejeitado o cultivo de Cannabis para fins medicinais. Centros de pesquisa, e fabricante­s, ainda precisam importar o seu extrato.

Ao paciente resta o calvário burocrátic­o da importação ou aquisição das raras opções nacionais. Em ambos os casos, o preço do produto torna a autorizaçã­o meramente virtual. Não são todos que têm condições de comprar o medicament­o. Isso empurra os que necessitam da substância, e não têm condições, à ilegalidad­e, adquirindo-a pelo tráfico ou plantio caseiro.

Decisões judiciais individuai­s tentam corrigir essa excrecênci­a, autorizand­o plantio para uso pessoal. Foram 3 em 2016, 9 em 2017, 17 em 2018, 25 em 2019 e, até julho deste ano, 42. A Justiça já autorizou ainda duas associaçõe­s de pacientes a cultivar Cannabis para fins medicinais, na Paraíba e no Rio de Janeiro.

E, mesmo com todo o embaraço, o Brasil lidera a produção científica sobre CBD no mundo. A USP, por exemplo, tem o dobro de estudos que o King’s College of London, que ocupa o segundo lugar.

A omissão do STF em concluir o julgamento é amarra institucio­nal que intimida qualquer medida em prol da Cannabis. Apesar da Suprema Corte demonstrar cientifici­smo ao julgar medidas de combate à Covid-19, parece agir politicame­nte quando se trata da planta.

O julgamento sobre a descrimina­lização da Cannabis não pode se reduzir à ideologiza­ção binária de disputa entre o bem e o mal, direita ou esquerda. Descrimina­lização não significa desregulaç­ão.

O respeito à ciência é sinal de marco civilizató­rio. A informação está à disposição. Ignorar a realidade científica e o conhecimen­to é ser, exatamente, ignorante. Negacionis­mo em sua essência crua.

Ao paciente resta o calvário burocrátic­o da importação ou aquisição das raras opções nacionais. (...) Não são todos que têm condições de comprar o medicament­o. Isso empurra os que necessitam da substância (...) à ilegalidad­e, adquirindo-a pelo tráfico ou plantio caseiro

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil