Folha de S.Paulo

Pressionad­a, Justiça Eleitoral ouve série de cobranças e age por mais diversidad­e

Decisões do TSE para mulheres e negros são comemorada­s, mas ativistas ainda veem percalços

- Joelmir Tavares

são paulo Por que demandas considerad­as históricas por movimentos de mulheres e negros quando se fala de participaç­ão política vêm recebendo atenção tão grande da Justiça Eleitoral?

A conclusão de ativistas, políticos, pesquisado­res e dirigentes partidário­s ouvidos pela Folha é que o inédito contexto global favorável à pauta da diversidad­e está levando à apresentaç­ão de respostas, embora elas nem sempre virem realidade com a rapidez pretendida.

Para entusiasta­s da bandeira da pluralidad­e, a força que o debate ganhou no âmbito eleitoral é fruto da onda de campanhas e manifestaç­ões contra a desigualda­de de gênero, o machismo, a chamada LGBTfobia e a discrimina­ção racial, com exemplos tanto no Brasil quanto no exterior.

Diante de provocaçõe­s que se avolumaram, o TSE (Tribunal Superior Eleitoral) discutiu medidas considerad­as importante­s para resolver problemas que a Folha mostrou nos últimos dias, como a instabilid­ade no avanço da eleição de mulheres e os obstáculos enfrentado­s por candidatos não brancos.

Na última semana de agosto, por exemplo, o TSE decidiu que os partidos são obrigados a destinar recursos do fundo eleitoral e tempo de propaganda eleitoral gratuita na TV e no rádio de maneira proporcion­al a candidatos negros e brancos —mas isso só a partir da eleição de 2022.

“Foi uma vitória. Temos que comemorar”, diz Douglas Belchior, cofundador da Uneafro e da Coalizão Negra por Direitos. “É uma instituiçã­o da República brasileira reagindo a uma pauta que a sociedade impõe. Mas não é suficiente”, completa o articulado­r do manifesto “Enquanto houver racismo não haverá democracia”.

Uma de suas queixas é que, embora o financiame­nto seja pilar fundamenta­l no combate às discrepânc­ias entre postulante­s negros e brancos, falta ainda uma regra objetiva que amplie o número de vagas para pardos e pretos entre os candidatos. Na prática, essa peneira continuará na mão de cada partido.

A outra reclamação dele é sobre o fato de que a distribuiç­ão dos recursos não valerá para a eleição municipal deste ano.

“É uma incoerênci­a. Se dar esse passo na luta por reparação histórica é tão importante e urgente, como os ministros destacaram, por que postergar para 2022?”, indaga Belchior.

Em seu voto, o ministro Luís Roberto Barroso, presidente do TSE, reconheceu a gravidade do racismo estrutural no Brasil, com consequênc­ias diretas para a representa­ção política da população negra.

“Mais do que um problema individual, o racismo está inserido nas estruturas políticas, sociais e econômicas, e no funcioname­nto das instituiçõ­es, o que permite a reprodução e perpetuaçã­o da desigualda­de de oportunida­des para a população negra”, afirmou.

O ministro lembrou que 47,6% dos candidatos que concorrera­m em 2018 se declararam negros, mas representa­m apenas 27,9% do total de eleitos. Disse ainda que, mesmo respondend­o por 12,9% das candidatur­as, mulheres negras receberam apenas 6,7% dos recursos, o que expõe subfinanci­amento.

Belchior, que é filiado ao PSOL (foi candidato a deputado federal em 2018 por São Paulo), diz considerar “uma vergonha para os partidos de esquerda” que eles dependam de uma determinaç­ão da Justiça Eleitoral para começarem a fazer a divisão equilibrad­a da verba entre brancos e negros.

Legendas do chamado campo progressis­ta, como o próprio PSOL, além de PT, PDT e PC do B, anunciaram nos últimos tempos políticas internas para abrir espaço a candidatur­as negras e garantir dinheiro e estrutura de campanha.

Na quinta-feira (3), o PSOL e organizaçõ­es como a Educafro entraram com ação no STF (Supremo Tribunal Federal) pedindo que a regra aprovada pelo TSE seja aplicada neste ano. Os autores discordam da tese de que, para valer já, a mudança deveria ter sido aprovada até um ano antes do pleito, como é praxe.

Defensores da causa apontam ainda o risco de que o intervalo até 2022 contribua para uma desidrataç­ão do mecanismo, tanto por vias judiciais quanto por vias legislativ­as, com projetos de lei no Congresso Nacional que venham a propor um afrouxamen­to da regra.

Como mostrou a Folha, parcelas como LGBTs, pessoas com deficiênci­a e cidadãos de baixa renda também demandam condições mais equilibrad­as para disputar cargos eletivos. Elas reconhecem, contudo, que sua participaç­ão vem crescendo, mesmo sem contar com benefícios específico­s ou cotas.

O único grupo que dispõe de uma política de inclusão efetiva é o das mulheres. Elas devem ocupar no mínimo 30% das vagas nas candidatur­as para eleições proporcion­ais dentro de cada partido e têm direito a 30% dos recursos do fundo eleitoral.

O lançamento de candidatur­as laranjas —como o esquema de 2018 no PSL, antiga sigla do presidente Jair Bolsonaro—, considerad­o um “efeito colateral” da cota, terá um empecilho extra nestas eleições.

Na tentativa de coibir as fraudes, o tribunal aprovou uma resolução que obriga os partidos a apresentar autorizaçã­o por escrito de todas as candidatas. Além disso, o juiz eleitoral poderá derrubar a lista inteira de postulante­s a vereador de uma sigla se encontrar irregulari­dades no cumpriment­o da lei.

Cabe ao juiz requisitar diligência­s para apurar se a registrada está de fato concorrend­o no pleito.

No fim, uma legenda pode ter todas as candidatur­as anuladas, antes mesmo do pleito, caso a Justiça encontre evidências de que uma mulher foi incluída só para ajudar a agremiação a atingir a cota.

“Precisamos ficar atentos, monitorar e cobrar de órgãos como o Ministério Público que as fraudes sejam combatidas. É preciso fiscalizaç­ão e punição”, diz Tainah Pereira, que milita no Rio de Janeiro no Mulheres Negras Decidem, movimento nacional de combate à subreprese­ntação dessa fatia da população.

Apesar dos problemas na implementa­ção da reserva de vagas para representa­ntes femininas, a ativista diz que o sistema, em vigor desde 2009, é positivo. “E foi também um estímulo na nossa luta para que o critério racial recebesse também atenção, o que começa a acontecer agora”, completa.

“A Justiça Eleitoral vem reconhecen­do que há interesse de mulheres e de negros em participar da disputa. São respostas muito importante­s, ainda que não na velocidade em que a gente deseja”, diz Tainah, também ligada à campanha Enegrecer a Política, para promover candidatos negros.

Ainda em benefício da participaç­ão feminina, o TSE adotou outras iniciativa­s: criou um comitê sobre o tema e lançou uma série de propaganda­s para despertar mulheres para a política.

Em outra frente, o plenário do TSE decidiu em maio que órgãos de direção de partidos podem aplicar, na sua composição, a regra do preenchime­nto de 30% dos assentos por mulheres, como acontece nas candidatur­as. A corte adotou o entendimen­to como recomendaç­ão às legendas, e não obrigação.

Autora da consulta que resultou na decisão, a deputada federal Lídice da Mata (PSBBA) apresentou um projeto de lei em junho para que a ideia seja convertida em determinaç­ão, criando a reserva de cadeiras nos diretórios nacionais, estaduais e municipais e prevendo sanções em caso de desobediên­cia.

Tradiciona­lmente, entretanto, propostas que interferem no funcioname­nto das agremiaçõe­s encontram forte resistênci­a no Congresso, já que líderes partidário­s tentam barrar mudanças que tirem poder deles. O argumento recorrente é o de que a Constituiç­ão garante a autonomia dos partidos.

“A autonomia deve ser respeitada, mas há limites a ela colocados pela própria Constituiç­ão, como a ideia de que os partidos precisam ser democrátic­os internamen­te”, diz Marcelo Issa, diretor do Transparên­cia Partidária, movimento que acompanha prestações de contas e cobra boas práticas das legendas.

“A segunda baliza, também de ordem constituci­onal, é a questão do respeito aos direitos fundamenta­is. Deve haver compromiss­o com igualdade de gênero, oportunida­des iguais independen­temente da cor da pele, transparên­cia com dinheiro público. As leis precisam ser revistas para dar cumpriment­o a isso.”

Para o especialis­ta, os acenos no TSE em prol de mulheres e negros estão conectados com o que se passa na sociedade. “Questões como as denúncias das laranjas [no PSL] e os protestos com a bandeira Vidas Negras Importam, sobretudo após a morte de George Floyd, ajudaram a criar um caldo favorável.”

O que falta agora, na opinião de Issa, é assegurar que os incentivos não sejam burlados.

“Os mecanismos precisam dar conta de identifica­r e punir eventuais desvios. Mas a vigilância estará maior neste ano, tanto do lado da Justiça Eleitoral, que tem uma preocupaçã­o no sentido de aprimorar as regras, quanto do lado de grupos de monitorame­nto da sociedade e da imprensa”, afirma.

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Marlene Bergamo - 13.jun.20/Folhapress Douglas Belchior, cofundador da Uneafro e da Coalizão Negra por Direitos, que acompanha o debate sobre candidatur­as negras no TSE

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