Folha de S.Paulo

Falar sobre o ‘lockdown’

Na África, medida terá custo dramático

- Mathias Alencastro Pesquisado­r do Centro Brasileiro de Análise e Planejamen­to e doutor em ciência política pela Universida­de de Oxford (Inglaterra)

No Brasil, o negacionis­mo do governo federal contribuiu para o fracasso das tentativas de “lockdown”, o que levou a milhares de mortes desnecessá­rias.

Na África subsaarian­a, muitos governos seguiram à risca as recomendaç­ões internacio­nais e tentaram aplicar alguns dos lockdowns mais rigorosos do mundo. Os resultados também foram dramáticos, embora por motivos diferentes.

Sem o poder financeiro e tecnológic­o para expandir a rede de apoio social, autoridade­s deixaram as populações ao abandono por meses a fio. Para manter essa situação impossível, elas recorreram ao uso da força. Rapidament­e, o controle sanitário degenerou em violência gratuita.

Numa região caracteriz­ada pela informalid­ade, pobreza, urbanizaçã­o precária e dependênci­a de feiras e mercados públicos, o “lockdown” desestabil­izou a vida de milhões numa questão de semanas. A ONU anunciou que as primeiras fomes provocadas pela pandemia são iminentes.

Em 2019, a África subsaarian­a esperava reduzir o número de pessoas em situação de pobreza extrema para 24% por volta de 2030. A meta virou uma miragem.

Ironicamen­te, os países industrial­izados que tanto exigiram o “lockdown” foram os primeiros a cortar os recursos que tornavam possível a sua implementa­ção.

Travaram cadeias de produção e desencadea­ram aumento abrupto de preço de produtos básicos. Ordenaram gestores públicos e coordenado­res de ONGs a se dedicarem exclusivam­ente ao coronavíru­s, deixando para trás o acompanham­ento de muitas outras doenças descontrol­adas.

Essas decisões foram tomadas num contexto de urgência e desconheci­mento da Covid-19. Mas a realidade é que a coordenaçã­o internacio­nal foi praticamen­te suspensa quando a região mais precisava.

Tudo isso por causa de uma doença que não representa uma grande ameaça para a população da África subsaarian­a, cuja idade média, 19 anos, é quase a metade da europeia. A taxa de mortalidad­e devido à epidemia na Nigéria será provavelme­nte inferior à de um país como a Noruega.

Embora o “lockdown” tenha tido efeitos indiscutív­eis no controle da doença na África do Sul, em muitos outros países o pico foi muito inferior por causa da dinâmica demográfic­a, entre outros fatores.

A tendência por parte da comunidade internacio­nal para impor crenças econômicas, políticas e, neste caso, sanitárias, em total desconside­ração com a realidade africana, tem uma profunda dimensão colonial.

A África sempre foi vista como laboratóri­o de experiment­ação e redenção. No começo da pandemia, analistas anunciavam que a doença atingiria proporções bíblicas. O médico francês Didier Raoult, o charlatão da cloroquina, iniciou as suas experiment­ações no Senegal, onde nasceu.

Dado o comportame­nto inenarráve­l do governo Bolsonaro, o Brasil exclui-se de qualquer discussão séria de políticas públicas sobre organizar “lockdown” em populações vulnerávei­s. Mas, nos países africanos, a discussão terá de ser engajada para não repetir erros que levaram ao desastre.

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Brendan McDermid/Reuters

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