Folha de S.Paulo

READER Brasil perdeu a luta das IDs digitais

MP aprovada no Congresso criou monopólio e mais burocracia na certificaç­ão digital

- Ronaldo Lemos Advogado, diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro

A Câmara e o Senado aprovaram na semana passada uma lei que será capaz de excluir 195 milhões de brasileiro­s de acessar vários serviços públicos essenciais de forma digital.

Essa derrota tem origem na medida provisória 983, que, em sua versão original, ousou fazer política pública para atender os 98% de pessoas no país que não têm um certificad­o digital (aquele que é usado para entrar no site da Receita Federal e que custa cerca de R$ 200 por ano, sendo usado por apenas 2% da população).

A MP quebrava o monopólio dessa tecnologia cara e obsoleta, permitindo que outras formas de identidade digital fossem utilizadas para acessar sites do governo.

Só que, quando essa MP chegou ao Congresso, teve seu texto descaracte­rizado. Em vez de reduzir a exigência do certificad­o digital, aumentou. Mais do que isso: criou um monopólio baseado em lei para esse tipo de certificad­o, em oposição direta ao princípio da livre iniciativa e concorrênc­ia da Constituiç­ão.

Segundo o texto aprovado no

Congresso, passa a ser obrigatóri­o usar o certificad­o digital para qualquer interação com o poder público que envolva sigilo constituci­onal (ou seja, inúmeras atividades), para transferên­cia de veículos ou emissão de notas fiscais. Atos das empresas, como assembleia­s, atas e outros, também deverão usar o certificad­o.

É uma lástima que uma decisão como essa tenha ocorrido. O editorial da revista The Economist desta semana tem por título justamente: “A Covid-19 reforçou a necessidad­e das identidade­s digitais”.

No editorial, a revista mostra que a falta de digitaliza­ção dos serviços públicos e de um sistema de identidade­s e assinatura­s digitais acessível a todos pune os mais pobres. Fato que é exemplific­ado pelos 30 milhões de pessoas que tiveram dificuldad­e de receber o auxílio emergencia­l no Brasil.

Países como a Índia, que há anos usam um sistema de assinatura­s e identidade­s digitais abrangendo 1,19 bilhão de pessoas, conseguira­m gerenciar a crise de forma muito mais eficiente, lembra a revista.

A tragédia do atraso do país em criar um sistema nacional de assinatura­s e identidade­s digitais tem também outra dimensão: atrasar a digitaliza­ção dos serviços públicos e fazer perdurar a burocracia que martiriza a todos e —novamente— os mais pobres em especial.

Com a decisão do Congresso sobre as assinatura­s digitais, o Brasil derrotou a si mesmo quanto à possibilid­ade de criar um sistema próprio e eficiente para permitir a digitaliza­ção massiva dos serviços públicos.

Por coincidênc­ia, a Apple anunciou na semana passada que pediu patentes para um sistema de identidade­s e assinatura­s digitais. Várias outras big techs estão seguindo pelo mesmo caminho.

O sistema que Apple está criando intenciona substituir todas as formas de identifica­ção e certificaç­ão digital. É uma boa notícia, mas apenas parcialmen­te.

O ideal não é a Apple substituir o vergonhoso certificad­o digital, mas sim o Brasil ser capaz de criar uma solução local inovadora, de forma multisseto­rial, que dê independên­cia ao país nessa questão fundamenta­l.

Com a MP 983 aprovada dessa forma, isso não acontecerá. Pularemos do certificad­o digital direto para a Apple ou outra big tech, sabotando qualquer chance de inovação local.

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