Folha de S.Paulo

Ministério Público tenta bloquear R$ 4,4 bi de gestora do seguro DPVAT

Procurador­ia acusa Seguradora Líder de gestão temerária e leniência com fraudes; empresa diz estar comprometi­da com esclarecim­entos

- Nicola Pamplona

rio de janeiro O Ministério Público Federal pediu à Justiça o bloqueio de R$ 4,4 bilhões da Seguradora Líder, responsáve­l por gerir o seguro DPVAT, obrigatóri­o para indenizar vítimas de acidentes de trânsito que o governo Jair Bolsonaro tentou extinguir em 2019.

A Procurador­ia acusa a empresa de leniência com fraudes na obtenção de seguros e maquiagem nas projeções de sinistros. Diz que a Líder “tem gerido esses recursos públicos federais de forma temerária, danosa e em vilipêndio aos princípios constituci­onais de economicid­ade, transparên­cia e legalidade”.

Em primeira decisão sobre o caso, o juiz Mauro Luiz Rocha Lopes, do Tribunal Regional Federal da 2ª Região, negou o pedido, sob o argumento de que o processo ainda está em fase inicial e que o bloqueio poderia colocar em risco o cumpriment­o das obrigações da empresa.

O DPVAT foi tema de série de reportagen­s da Folha em 2020, que mostraram denúncias de mau uso do dinheiro arrecadado —com a compra, por exemplo, de veículos e garrafas de vinho— e de conflitos de interesse e favorecime­nto de sindicatos de corretores.

O consórcio foi formado em 2006, com a função de administra­r o seguro que é cobrado de todos os proprietár­ios de veículos. É formado por 55 corretoras, entre elas subsidiári­as de gigantes do mercado financeiro como Bradesco Auto/Re Corretora de Seguros, Itaú Seguros de Auto e Residência e Caixa Seguradora.

Para o Ministério Público, o monopólio na gestão do DPVAT trouxe prejuízo ao contribuin­te, já que as regras de remuneraçã­o do consórcio incentivar­am o aumento indiscrimi­nado de custos e a leniência com as fraudes que os gestores deveriam combater.

Como recebe 2% do total arrecadado pelo seguro, dizem os procurador­es, o lucro de seus associados é proporcion­al ao valor do prêmio pago pelos segurados. Assim, diz a Procurador­ia, não havia incentivos para combater fraudes nem cortar despesas.

A ação civil pública que pede o bloqueio dos recursos é baseada em descoberta­s da Operação Tempo de Despertar, que investigou um “gigantesco esquema de fraudes” na concessão de indenizaçõ­es —que incluía a compra de boletins de ocorrência e laudos médicos fraudados— e em relatórios do TCU (Tribunal de Contas da União).

O Ministério Público Federal aponta que o valor das indenizaçõ­es pagas pelo seguro DPVAT passou da casa dos 300 milhões no início dos anos 2000 para mais de R$ 700 milhões em 2005. Continuou subindo até passar a marca de R$ 1 bilhão em 2006 e superou os R$ 2 bilhões em 2010.

Os gastos com escritório­s de advocacia também subiam, como já havia mostrado a Folha, mas sem cláusulas de desempenho no questionam­ento das fraudes.

“O incremento das despesas do Consórcio de Seguradora­s, em vez de refletir de forma negativa na margem de lucros das seguradora­s Consorciad­as, provoca um aumento dessa margem de lucros”, explicam os procurador­es.

O valor do bloqueio equivale, segundo a ação, ao excedente acumulado pela seguradora “a partir de práticas irregulare­s e perniciosa­s”. A empresa tem R$ 8,9 bilhões em seu caixa, mas precisa de apenas R$ 4,5 bilhões para fazer frente a suas despesas e compromiss­os com o pagamento de indenizaçõ­es.

Bolsonaro tentou extinguir o seguro em 2019 e já falou em reaver essa quantia, mas a empresa diz entender que os recursos são privados —avaliação questionad­a pelos órgãos de controle, como o MPF e a Susep (Superinten­dência de Seguros Privados).

“Essa elevada soma, não obstante sua inquestion­ável natureza pública, permanece sob a gestão da mesma empresa privadaque­duranteano­sagiuem total descompass­o com a relevante função que lhe foi delegada”, escreveu a Procurador­ia, que acusa também a Susep de ter “olhos complacent­es” para as irregulari­dades.

Durante anos, o órgão regulador foi capturado por seguradora­s e corretores de seguros, que mantiveram representa­ntes na diretoria da autarquia que fiscaliza o setor, o que levou os servidores da Susep a preparar uma denúncia de conflito de interesses e favorecime­nto à Polícia Federal.

Uma das críticas do Sindsusep são repasses, durante 20 anos, de taxa de corretagem a sindicatos de corretores de seguros. O valor total do repasse soma R$ 266 milhões. Para os servidores, é irregular porque o seguro é obrigatóri­o e, por isso, não envolve corretores.

A presidente da Susep, Solange Vieira, já havia admitido em entrevista à Folha dificuldad­es de fiscalizaç­ão do DPVAT. Essa é, na visão do governo, uma das razões para a proposta de extinção do seguro obrigatóri­o, que foi barrada pelo Supremo.

A entidade voltou a ser cobiçada por lideranças sindicais ligadas aos corretores após a aproximaçã­o de Bolsonaro com o centrão, como o presidente do Solidaried­ade de Goiás, Armando Vergílio, um dos alvos da denúncia do SindSusep no período em que presidiu a autarquia.

Em nota, a Líder disse que ainda não foi foi notificada formalment­e sobre a ação movida pelo Ministério Público Federal e que está comprometi­da com todos os esclarecim­entos que se façam necessário­s sobre a gestão dos recursos do Seguro DPVAT.

“A Líder ressalta que, nos últimos anos, realizou transforma­ções estruturai­s na governança, combate às fraudes e operação do seguro, garantindo reduções de despesa na ordem de R$ 400 milhões.”

Os recursos excedentes acumulados, defende, seriam resultado dessas ações de eficiência, o que teria sido atestado em 2018 pelo então Ministério da Fazenda (hoje Ministério da Economia), ao anunciar a redução do prêmio tarifário para 2019.

A empresa alega ainda que a natureza privada dos recursos excedentes “já foi amplamente debatida e, inclusive, manifestad­a pelo TCU e por diversos juristas de renome”.

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