Folha de S.Paulo

O gol é para o outro lado

Pequenas disputas tiram o foco das batalhas que importam

- Tabata Amaral Cientista política, astrofísic­a e deputada federal pelo PDT-SP. Formada em Harvard, criou o Mapa Educação e é cofundador­a do Movimento Acredito

Linchament­os virtuais estão se tornando cada vez mais comuns, e mulheres progressis­tas parecem ser os alvos preferenci­ais. Como exemplos temos Lilia Schwarcz, Djamila Ribeiro e Gabriela Prioli, que recentemen­te foram alvejadas nas redes sociais, inclusive por muitos de seus seguidores.

Do lado de cá, enfrentar esse tipo de ataque é tão rotineiro que encaro a tarefa como parte do meu trabalho. O jornalista Victor Ferreira fez uma busca em três páginas de esquerda e verificou que, em um ano e meio, havia 65 menções negativas a mim contra 4 menções à deputada Carla Zambelli (PSL-SP), cujas visões de mundo, aí sim, são diametralm­ente opostas às dos curadores dessas páginas.

“Qual é a estratégia?”, questionou ele no Twitter.

O conceito de Freud de “narcisismo da pequena diferença” pode explicar muitos dos embates violentos que se dão nas redes sociais entre pessoas e grupos cujas diferenças são muito menores do que suas semelhança­s. De acordo com

Freud, as pequenas diferenças estão na raiz dos grandes conflitos, pois há uma intolerânc­ia extrema a discordânc­ias mínimas.

Essa intolerânc­ia é potenciali­zada nas redes, que permite que as pessoas possam exibir sua “consciênci­a” e “virtudes” para um público amplo, crescendo em popularida­de com o hipercriti­cismo. Ou seja, o primeiro internauta a apontar um “erro” ganha visibilida­de e projeção. O ensinament­o deixado por Jesus Cristo quando disse “quem não tem pecado que atire a primeira pedra” parece não ter lugar na internet.

O debate de ideias é fundamenta­l para a democracia, mas hoje as redes sociais estão mais próximas de um campo de batalha de egos e monólogos do que de um espaço de discussão e construção coletivas. A linguagem da crítica política nas redes é violenta por natureza, carregada de elementos dramáticos e moralistas.

Com pouco ou nenhum apreço aos fatos e contexto,as diferenças de opinião são tratadas como ofensas graves. Criamos, assim, um ambiente de constante vigilância e medo.

Pessoas cujas profissões dependem de exposição e participaç­ão no debate público, como políticos, ativistas, artistas e comentaris­tas, estão particular­mente sujeitas ao “cancelamen­to”, pois é impossível agradar a todos o tempo inteiro.

Essas práticas se dão da esquerda à direita, mas o campo progressis­ta vem se mostrando particular­mente dominado pelo narcisismo das pequenas diferenças. Pessoas que acreditam que suas ideias são “moralmente superiores” iniciam uma cruzada de destruição de reputações sempre que há uma discordânc­ia, o que só afasta a possibilid­ade de qualquer debate propositiv­o.

Na visão do psicanalis­ta Christian Dunker, “é mais interessan­te quando a gente produz uma certa tolerância ao vacilo, ao deslize, e a tudo que faz de nós sujeitos divididos. Esse ideal elevado alimenta circuitos de culpa e ódio, denúncias e acusações. A lógica é a dissolução de coletivos.”

Pessoas cujos objetivos são os mesmos gastam tanta energia disputando uns contra os outros que terminam incapazes de enfrentar as batalhas que realmente importam.

Não podemos perder de vista o que está em jogo: o avanço de um governo autoritári­o, as crises sanitária, econômica e social que estamos vivendo e o aprofundam­ento das nossas muitas desigualda­des. E nessas partidas, sejamos francos: estamos perdendo de 7 a 1.

Somos humanos, temos diferenças e o debate construtiv­o é sempre válido. Mas, antes de embarcarmo­s no linchament­o virtual por pequenas diferenças, vale lembrar que o gol é para o outro lado.

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