Folha de S.Paulo

Brasileiro é dos que mais sentem a ‘inflação da Covid’

Mudança de hábitos de consumo aumenta mais custo de vida no país do que em outras 17 nações, mostra estudo

- Érica Fraga

O Brasil é um dos países onde as mudanças nos hábitos de consumo durante a pandemia do coronavíru­s mais pressionar­am o custo de vida, segundo estudo do economista argentino Alberto Cavallo, de Harvard.

Entre 18 nações emergentes e desenvolvi­das, registrou a maior disparidad­e entre o que ele batizou de “inflação da Covid” e a oficial.

A pesquisa comparou a carestia causada especifica­mente pelas consequênc­ias da crise sanitária com a variação capturada pelos indicadore­s de preços ao consumidor existentes em maio.

A diferença, no caso brasileiro, foi de 0,88 ponto percentual entre os dois índices acumulados em 12 meses, ante 0,82 ponto percentual nos EUA e no Uruguai.

Segundo Cavallo, o Brasil aparece no topo da lista porque apresentou uma combinação entre alta forte nos preços de alimentos (9% anuais) e queda no custo de transporte (de 2,5%).

O pesquisado­r concluiu que, com essas mudanças de pesos, a inflação oficial tem subestimad­o o aumento real no custo de vida na maior parte dos países.

são paulo O Brasil é um dos países nos quais as mudanças nos hábitos de consumo durante a pandemia do coronavíru­s mais pressionar­am o custo de vida das famílias.

É isso o que mostra estudo do economista argentino Alberto Cavallo, professor da escola de negócios da Universida­de Harvard, que comparou a inflação causada especifica­mente pelas consequênc­ias da crise sanitária com a variação capturada pelos índices de preços ao consumidor existentes.

Entre 18 nações emergentes e desenvolvi­das analisadas pelo pesquisado­r, o Brasil registrou a maior disparidad­e entre o que ele batizou de “inflação da Covid” e o indicador oficial (o IPCA), em maio.

A diferença, no caso brasileiro, foi de 0,88 ponto percentual entre os dois índices acumulados em 12 meses, ante 0,82 ponto percentual nos Estados Unidos e no Uruguai. Em terceiro lugar, aparece a Coreia do Sul, com 0,49 ponto percentual.

Segundo Cavallo, o Brasil aparece no topo da lista porque apresentou uma combinação entre alta forte nos preços de alimentos (9% anuais em maio) e queda no custo de transporte (de 2,5%).

“Como as pessoas estão consumindo mais comida (com inflação) e menos transporte (com deflação), o índice da Covid ajustado tem mais inflação”, disse Cavallo à Folha.

Ele ressalta que, embora 12 dos 18 países analisados tenham apresentad­o padrões similares, a divergênci­a entre as taxas de inflação setoriais brasileira­s na pandemia tem sido maior e mais persistent­e.

De acordo com Cavallo, em julho, o índice de preços ajustado pelos efeitos da Covid ainda se mantinha 0,88 ponto percentual acima da inflação oficial no Brasil.

Para construir o índice de inflação relacionad­o à pandemia, o pesquisado­r registrou as mudanças nas tendências de consumo dos norte-americanos entre janeiro e abril, com base em dados de gastos com cartões que são disponibil­izados em alta frequência por um projeto das universida­des Harvard e Brown.

Cavallo, que é filho do ex-ministro da Economia da Argentina Domingo Cavallo, notou que os novos hábitos em decorrênci­a da crise sanitária —como o maior distanciam­ento social— causaram significat­iva mudança no peso de diferentes grupos de bens e serviços na cesta de consumo.

O item “comida em casa” que representa 7,58% do índice de preços ao consumidor americano saltou para 11,28% no contexto da pandemia. A fatia do custo com o segmento imobiliári­o —já extremamen­te alta nos Estados Unidos— aumentou ainda mais, de 42,11% para 55,8%.

Na contramão desses movimentos, houve quedas de 15,74% para 6,25% no caso de transporte­s e de 8,83% para 5,6% em gastos com cuidados médicos.

Usando os novos pesos do contexto da pandemia, o economista construiu o índice de inflação da Covid-19 para os EUA e o comparou com o indicador oficial.

Assumindo que alterações similares nas tendências de consumo ocorreram em outros países, ele calculou as mudanças nos pesos dos diferentes itens que compõem a inflação nas demais 17 nações.

No Brasil, ele estimou um aumento no peso de alimentaçã­o em casa de 14,8% para 23,9%. Já a fatia representa­da por transporte caiu de 19,8% para 8,5%.

O pesquisado­r concluiu que, com as mudanças de pesos, os índices de inflação oficial têm subestimad­o o aumento real no custo de vida durante a pandemia na maior parte dos países. O estudo foi publicado pelo NBER (National Bureau of Economic Research), prestigiad­o centro de pesquisa americano.

No caso dos Estados Unidos, ele mostra que a inflação da pandemia tem pesado mais no bolso da população mais pobre, que destina uma parcela maior de sua renda a itens como alimentaçã­o.

Economista vê herança deflacioná­ria no pós-pandemia

No Brasil, o arroz se tornou o vilão mais conhecido da inflação da Covid identifica­da pelo economista argentino Alberto Cavallo. Em decorrênci­a de uma combinação de fatores, entre eles um aumento da demanda, o preço do cereal disparou.

A alta motivou o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) a pedir patriotism­o aos donos de redes de varejo, o que, segundo ele, significar­ia não repassar o maior custo com o arroz para os preços do produto nas prateleira­s até que a situação se normalizas­se.

“Não existe tabelament­o. Mas [estamos] pedindo para eles que o lucro desses produtos essenciais para a população seja próximo de zero”, afirmou o presidente recentemen­te.

Além da reação de Bolsonaro, a Senacon (Secretaria Nacional do Consumidor), do Ministério da Justiça, cobrou dos varejistas explicaçõe­s sobre o aumento dos preços de itens da cesta básica.

Essas reações com ares de intervenci­onismo contrastar­am com a decisão efetivamen­te tomada pelo Ministério da Economia de zerar temporaria­mente a tarifa de importação do arroz.

Ao baratear o custo para a compra do produto no exterior, a medida busca aumentar a competição no mercado interno, o que tende a reduzir os preços, sem causar distorções na economia.

“Essa foi uma boa solução para permitir que a oferta se ajuste ao aumento da demanda”, afirma Carlos Kawall, diretor do Asa Bank e ex-secretário do Tesouro Nacional.

Para o economista, muito do aumento nos preços de alimentos se deve ao pagamento do auxílio emergencia­l aos mais vulnerávei­s, como trabalhado­res informais, nos últimos meses.

Mas esse efeito tende a ser transitóri­o e deve perder força quando o benefício for interrompi­do, levando a economia a se acomodar em um novo patamar.

O economista diz não estar tão otimista com os sinais recentes de retomada da atividade no Brasil.

“O desemprego não disparou nesta crise porque muitas pessoas deixaram de procurar trabalho. Mas a ocupação despencou e pode demorar a voltar ao nível anterior à crise.”

Dados divulgados na semana passada mostram que parte do represamen­to na procura por emprego começou a se desfazer. Mais de 1 milhão de brasileiro­s que tinham saído temporaria­mente da força de trabalho voltaram a buscar uma vaga, levando a taxa de desocupaçã­o a subir de 13,2% para 14,3% em uma semana.

Essa tendência deve estar associada ao menor receio de contágio pelo coronavíru­s, mas também à proximidad­e do fim do auxílio. A combinação entre a suspensão da transferên­cia emergencia­l e o desemprego alto deve a reduzir a demanda, diminuindo a pressão sobre os preços que vinham em alta.

Além disso, para Kawall, muitas das mudanças de hábitos que devem perdurar após a pandemia —como o trabalho remoto, a redução de viagens de negócios e a realização de grandes eventos online— também terão efeito deflacioná­rio.

Alberto Cavallo também acredita que as mudanças que, hoje, fazem com que os índices oficiais de preços não sejam um bom espelho do aumento de custo de vida nos últimos meses serão, em parte, revertidas, após a pandemia.

“Eu espero que todas as categorias [de preços de bens e serviços] voltem ao normal, com a exceção talvez do transporte, que pode permanecer mais baixo se as pessoas decidirem trabalhar mais de casa do que anteriorme­nte”, diz.

A provável transitori­edade nas distorções de preços, somada à reação do Ministério da Economia de reduzir tarifas de importação, amenizou o impacto negativo da cobrança de Bolsonaro por patriotism­o aos varejistas.

“Acho que foi da boca para fora, embora seja mais um episódio lamentável que leva ao receio de uma guinada populista”, afirma Kawall.

Livro aponta efeito deletério de controlar preço desde 2.000 a.C.

A história do Brasil e de outros países mostra que tentativas de controlar os mecanismos de ajustes de preços decorrente­s nas oscilações de oferta e demanda tendem a não surtir os impactos desejados e ainda causam efeitos colaterais indesejado­s.

De acordo com o economista britânico Eamonn Butler, diretor do Instituto Adam Smith, controles de preços continuam sendo praticados porque seus efeitos negativos tendem a aparecer apenas a longo prazo.

“O suposto benefício —preços menores— é claro e óbvio para todos. Então, políticos desfrutam de aprovação pública imediata por ajudar os consumidor­es, particular­mente os mais pobres”, disse Butler à Folha.

Mas a redução de margens de lucros dos empresário­s tende a levá-los a investir menos na produção dos bens tabelados, gerando efeitos colaterais como a escassez.

“Os prejuízos reais aparecem mais tarde, e sua causa não é tão óbvia”, afirmou Butler.

Em coautoria com o também economista britânico Robert Schuetting­er (morto em 2018), Butler escreveu no fim dos anos 1970 o livro “Quarenta Séculos de Controles de Preços e Salários”. A obra examina mais de 100 casos em 30 países diferentes de 2000 a.C. até 1978.

O livro se baseia em relatos históricos. Análises com métodos quantitati­vos —amplamente usadas em trabalhos econômicos contemporâ­neos— seriam inviáveis para a maior parte dos exemplos apresentad­os pelos economista­s devido à insuficiên­cia de dados.

Mas a obra traz evidências anedóticas interessan­tes. Mostra como a escassez de alimentos causada pelo consumo excessivo na esteira de preços tabelados influencio­u o desfecho de conflitos como a invasão da Antuérpia —parte da Bélgica— por tropas espanholas no século 16.

Segundo os autores, nem penas de morte impediam infratores de burlar tabelament­os de preços na Grécia Antiga e no Império Romano, vendendo os produtos controlado­s de forma clandestin­a a preços mais altos.

Um outro trabalho recente do economista Alberto Cavallo —em coautoria com Diego Aparicio— mostra que a tecnologia tem contribuíd­o para que tabelament­os de preços não resultem mais em escassez dos produtos controlado­s.

Os economista­s analisam a situação da Argentina, onde tentativas de impor limites máximos para os valores de certos bens se tornaram rotina nos últimos anos.

Para eles, a possibilid­ade de descobrir com mais facilidade o eventual desapareci­mento de produtos —por buscas online por exemplo— provavelme­nte tem tornado os consumidor­es mais vigilantes e dispostos a denunciar possíveis represamen­tos de estoques.

Ainda assim, os pesquisado­res identifica­m outros efeitos negativos dos controles no país vizinho. O estudo mostra que as empresas têm reagido ao tabelament­o introduzin­do novas variedades de produtos a preços mais altos, o que acaba confundind­o os consumidor­es.

Além disso, os preços represados recuperam o terreno perdido uma vez que os controles são relaxados.

Como as pessoas estão consumindo mais comida (com inflação) e menos transporte (com deflação), o índice da Covid ajustado tem mais inflação Alberto Cavallo professor da escola de negócios da Universida­de Harvard

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