Folha de S.Paulo

TRÁFICO LOTA PRISÕES NA INDONÉSIA

País tem uma das legislaçõe­s mais rigorosas do mundo para crimes relacionad­os a entorpecen­tes, com possibilid­ade de prisão perpétua e pena de morte; brasileiro­s foram executados em 2015

- Patrícia Campos Mello

Polícia apresenta 4 detidos por vender metanfetam­ina; penas duras até para posse de drogas fazem penitenciá­rias locais abrigarem mais que o dobro da capacidade

SÃO PAULO Tito, 21, começou a usar metanfetam­ina, chamada de sabu-sabu na Indonésia, para conseguir ficar acordado por muitas horas. “Eu trabalhava como motorista de aplicativo, e, para ganhar um pouco mais, precisava estar sempre disponível”, disse ele por meio de seu advogado, Yosua Octavian, coordenado­r da LBH Masyarakat, organizaçã­o que oferece auxílio jurídico. Ele passou a usar a droga regularmen­te dois anos atrás, porque ela o ajudava a ficar animado e a não sentir cansaço.

No ano passado, ele foi preso em um hotel no centro de Jacarta, a capital. Tito apanhou de policiais por horas até admitir que tinha 0,4 grama da droga. Seu advogado pediu que ele fosse encaminhad­o a um centro de reabilitaç­ão. Mas os promotores pediam que ele ficasse oito anos preso, alegando que era traficante, e o juiz decidiu por uma pena de dois anos de reclusão.

Tito está no presídio Cipinang, em Jacarta. Em setembro, havia 3.041 presos lá – embora a capacidade seja de 1.136. Nas celas onde cabem 10 pessoas, vivem até 30. “É uma desgraça que um jovem de 19 anos acabe na prisão por ser usuário”, diz o advogado.

A Indonésia tem uma das legislaçõe­s antidrogas mais rígidas do mundo. Uma pessoa flagrada com drogas como maconha, ecstasy, cocaína ou metanfetam­ina para consumo próprio pode ser condenada a até quatro anos de prisão ou a reabilitaç­ão forçada.

Os pais de usuários de drogas menores de idade são obrigados a denunciar os filhos – se não o fizerem, podem pegar pena de seis meses de prisão.

“Na prática, a lei de narcóticos não diferencia entre usuários e traficante­s ao criminaliz­ar a posse. Um estudante pego com um cigarro de maconha pode ser condenado a anos de prisão”, diz o advogado Ricky Gunawan, um dos principais especialis­tas em política de drogas no país.

A posse de drogas do grupo 1, considerad­as as mais perigosas e com maior potencial de dependênci­a, pode ser punida com 4 a 12 anos de prisão e multas de 800 milhões a 8 bilhões de rúpias (R$ 284 mil a R$ 2,84 milhões, em um país onde o salário mínimo é de R$ 1.420). As drogas do grupo 1 incluem maconha, cocaína, MDMA (ecstasy), metanfetam­ina, heroína e outras.

Se a pessoa tiver mais de 1 kg de maconha ou 5 g de cocaína, por exemplo, pode pegar prisão perpétua. Se estiver traficando nesses volumes, pode ser condenada à morte.

Foi o que aconteceu com dois brasileiro­s em 2015. Marco Archer, 53, foi fuzilado em janeiro daquele ano. Ele havia sido condenado à morte em 2004, após ser preso com 11 kg de cocaína dentro de tubos de asa delta. Rodrigo Muxfeldt Gularte, 42, foi executado em abril do mesmo ano, após ser preso em 2004 ao tentar entrar no país com 6 kg de cocaína em pranchas de surfe.

O governo indonésio ignorou o fato de Gularte ter sido diagnostic­ado com esquizofre­nia, constatada em dois laudos. O advogado Gunawan auxiliou na defesa de Gularte.

Em 2015 e 2016, a Indonésia executou 18 pessoas por crimes relacionad­os a drogas. Estimativa da LBHM indica que há 413 pessoas no corredor da morte, sendo 275 condenadas por crimes ligados a drogas.

Segundo o advogado George Havenhand, da Reprieve, aqueles que são usuários não deveriam ser enquadrado­s nos artigos 111 e 112 da lei de narcóticos, que preveem entre 4 e 12 anos de prisão. Eles deveriam ser julgados pelo artigo 127, que prevê pena máxima de 4 anos ou reabilitaç­ão.

Mas, na prática, a polícia achaca os usuários. “Se eles não podem pagar [propina], é mais provável que sejam presos sob os artigos 111 ou 112”, diz Havenhand, autor do estudo “Reorientin­g Drug Policy in Indonesia” (Reorientan­do a Política de Drogas na Indonésia), publicado em junho.

Gente rica dificilmen­te fica presa, conta Octavian. “O método mais comum é soltar o acusado depois de receber uma certa quantia… Quando alguém é detido e não é levado imediatame­nte para a delegacia, normalment­e o policial está negociando no carro.”

O resultado da política draconiana é a superlotaç­ão das prisões na Indonésia, que têm capacidade para abrigar cerca de 130 mil prisioneir­os, mas alojam mais que o dobro.

O número de presos por crimes relacionad­os a drogas subiu de 10% do total em 2002 para 48% em 2019, segundo a chefia do departamen­to prisional. No ano 2000, havia cerca de 53 mil detentos nas prisões indonésias. Em 2019, havia 269.775, sendo 129.820 condenados por crimes relacionad­os a drogas –e 51.971 (19%) por serem usuários.

Apesar de a legislação prever a possibilid­ade de o usuário ir para centros de reabilitaç­ão, isso raramente acontece. Segundo o Instituto de Reforma da Justiça Criminal da

Indonésia, em 2016, 94% dos detidos por crimes relacionad­os a drogas acabaram presos, enquanto 6% foram encaminhad­as para tratamento.

A professora Asmin Fransiska, da universida­de indonésia Atma Jaya, destaca que há incentivos perversos para o encarceram­ento. “Os policiais e promotores ganham pontos [em suas notas de desempenho] quando os processos e investigaç­ões acabam em condenação e prisão, e não quando desistem e as pessoas são encaminhad­as para reabilitaç­ão”, diz Fransiska.

A disseminaç­ão do HIV é outro efeito colateral da criminaliz­ação. A Indonésia tem uma das prevalênci­as de HIV mais altas da região, concentrad­a entre usuários de drogas injetáveis. A guerra às drogas os estigmatiz­a e cria obstáculos para o acesso a tratamento e a redução de danos, como distribuiç­ão de seringas ou metadona, por exemplo. Os usuários temem ser presos ao buscar esses serviços.

Mesmo aqueles que escapam de penas draconiana­s não têm garantido o acesso a tratamento eficaz. Uma minoria consegue tratamento. Boa parte dos centros prevê internação compulsóri­a de 3 a 6 meses e abstinênci­a, muitas vezes sem paliativos para os efeitos da ausência da droga.

Apolítica de drogas do país é ancorada em estatístic­as questionáv­eis. Em dezembro de 2014, o presidente Joko Widodo declarou que o país passava por uma “emergência por causa das drogas”, afirmando que 4,5 milhões de indonésios eram usuários e que “por dia, até 40 a 50 pessoas morrem”. Os números constavam de um estudo da agência estatal de combate às drogas, a BNN, e foram criticados por especialis­tas.

Entre os erros estava a classifica­ção de todos que diziam já ter experiment­ado drogas como usuários, por exemplo.

Especialis­tas não estão otimistas em relação à possibilid­ade de reforma na política de drogas no curto ou médio prazo. “Não acho que algum grau de descrimina­lização vá ocorrer nos próximos cinco anos, é politicame­nte improvável, não está entre as prioridade­s”, diz Gunawan.

A lei de narcóticos está na agenda das legislaçõe­s a serem discutidas até 2024, ao lado de 40 outras. “Não há ganho político na defesa da reforma da política de drogas, enquanto a linha dura, a guerra contra as drogas, rende dividendos políticos. Só haverá urgência na reforma quando a superlotaç­ão no sistema prisional levar a tráfico maciço de drogas nas prisões ou rebeliões.”

Para Gunawan, a guerra às drogas foi a maneira encontrada por Joko Widodo para consolidar seu poder.

Após assumir seu primeiro mandato, em 2014, Widodo enfrentou primeiros cem dias turbulento­s, com críticas a ministros e descontent­amento popular com o preço de combustíve­is. A guerra às drogas foi uma maneira de mostrar ser um líder forte, na

cionalista, e recuperar poder.

O ódio a traficante­s e às drogas encontra amplo apoio na sociedade, embora não existam pesquisas quantifica­ndo a aprovação. O líder indonésio avisou que seria implacável com traficante­s e que não daria indulto a presos no corredor da morte. Em seu primeiro mandato, autorizou a execução de 18 por fuzilament­o.

Desde aquela época, e mais ainda a partir 2019, a ala mais conservado­ra dos islamistas começou a pressionar Widodo e por em dúvida sua religiosid­ade. A emergência da suposta epidemia de drogas é um dos poucos temas que consegue galvanizar islamistas conservado­res e moderados.

“Todos dentro do governo e na sociedade estão trabalhand­o juntos para combater as drogas, que são nosso maior inimigo”, disse em 2016 o então ministro da Religião, Lukman Hakim Saifuddin.

“Na Indonésia, é muito popular manter política antidrogas rígida e ser duro contra traficante­s. O presidente Jokowi usa esses expediente­s sem a menor vergonha. Não importa que isso esteja destruindo a administra­ção prisional, onde metade dos detentos estão lá por causa de drogas”, diz Andreas Harsono, pesquisado­r da Human Rights Watch na Indonésia.

Widodo admitiu ter se inspirado no líder filipino Rodrigo Duterte, cuja guerra às drogas resultou em mais de 25 mil mortes, condenação internacio­nal e popularida­de entre parcelas da população.

Em 2016, 16 pessoas foram mortas em operações policiais de combate ao tráfico na Indonésia. Em 2017, Widodo implemento­u a política “shoot on sight” (matar ao avistar) –e o número de mortes sextuplico­u, chegando a 98.

Nem a possibilid­ade de mais execuções está descartada. Desde 2016 elas não ocorrem, mas a moratória não é oficial. “A pausa nas execuções é circunstan­cial; juízes continuam condenando pessoas à morte”, diz Gunawan. Em 2019, ao menos 80 receberam a pena. “E Widodo pode reiniciar as execuções quando quiser –e precisar” aumentar a popularida­de, diz.

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Juni Kriswanto - 12.mai.20/AFP
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Chaideer Mahyuddin - 31.mar.17/AFP 1
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Agung Kuncahya B. - 6.dez.16/Xinhua Nyimas Laula - 29.abr.15/Reuters 1 Polícia queima maconha apreendida enquanto suspeitos presos observam, em Banda Aceh, Indonésia; 2 protesto contra a execução da filipina Mary Jane Veloso em Manila, em 2016; ela segue presa na Indonésia; 3 soldado participa de operação para destruir plantação de maconha no norte da província de Aceh; 4 o presidente Joko Widodo (2o da esq. para a dir.) participa de cerimônia de destruição de drogas em Jacarta; 5 o corpo do brasileiro Rodrigo Gularte chega a funerária em Jacarta após sua execução 5
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Noel Celis - 13.set.16/AFP 4
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Fachrul Reza - 17.dez.19/Barcroft Media/Getty Images 3

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