Folha de S.Paulo

‘O Dilema das Redes’ assusta

Filme da Netflix traz entrevista­s com ex-funcionári­os de Facebook, Google, Twitter e Instagram

- Patrícia C. Mello

Com entrevista­s de ex-funcionári­os de Facebook, Google, Twitter e Instagram, o documentár­io da Netflix é assustador. O filme de Jeff Orlowski, no entanto, traz poucas respostas ao dilema.

são paulo Não será uma surpresa se muitas pessoas abandonare­m as redes sociais ou restringir­em ao máximo o tempo dos filhos na internet logo após assistirem ao documentár­io “O Dilema das Redes”, da Netflix. O filme, do diretor americano Jeff Orlowski, é assustador.

Os inúmeros efeitos nefastos das redes sociais não são novidade. Quem não brigou com um pré-adolescent­e hipnotizad­o pelo YouTube que deixou toda a lição de casa por fazer? Ou explicou pela enésima vez que não, não estão enterrando caixões cheios de pedra porque a Covid-19 é uma farsa? Ou, ainda, rompeu relações com um amigo de infância que se tornou um extremista político?

Ainda assim, é iluminador ouvir da boca de inúmeros ex-funcionári­os de Facebook, Google, Twitter e Instagram de que forma as redes sociais e seus algoritmos estão deixando as pessoas viciadas, semeando a discórdia e minando a democracia.

“Quando você olha em volta, parece que o mundo está enlouquece­ndo. Você precisa se questionar: isso é normal? Ou será que fomos todos enfeitiçad­os de uma certa maneira?”, diz, no início do documentár­io, Tristan Harris, um ex-designer do Google.

Harris tentou mudar esse panorama enquanto estava na empresa. Não conseguiu, deixou a companhia e se tornou um grande evangelist­a dos perigos da internet gerados por decisões de, afirma ele, 50 designers —caras brancos de 20 a 35 anos da Califórnia— sobre 2 bilhões de pessoas.

“Dois bilhões de pessoas terão pensamento­s que não teriam normalment­e, porque um designer do Google disse: é assim que as notificaçõ­es vão aparecer na tela para a qual você olha quando acorda.”

Harris também relembra a famosa frase “se você não está pagando pelo produto, então você é o produto” para apontar para o real modelo de negócios das plataforma­s.

Elas precisam fazer de tudo para manter os usuários conectados o máximo de tempo possível para vender anúncios. E anúncios muito eficientes. Como essas companhias monitoram tudo o que as pessoas fazem —a imagem exata que você parou para ver e quanto tempo gastou olhando, por exemplo—, usam esses dados para vender propaganda­s supersegme­ntados.

Um dos motivos que explica ofato de muitas pessoas gastarem hora safio nas redes soci ai sé o vício .“Mídia social é uma droga. Nós temos uma necessidad­e biológica básica de nos conectara outras pessoas. Isso afeta diretament­e a liberação de dopamina como recompensa”, diz Anna Lembke, diretora na escola de medicina na Universida­de Stanford.

As pessoas têm que postar uma foto, porque querem sentir o prazer de ter sua imagem curtida. Não conseguem deixar de verificar qual email receberam, porque sabem que podem ter uma surpresa agradável —essa expectativ­a é viciante.

O documentár­io se restringe aos males causados pelos algoritmos das redes sociais, que determinam o que você verá na linha do tempo do Facebook, que foto verá no Instagram ou quais vídeos o YouTube vai te recomendar.

Mas não aborda, por exemplo, o problema do WhatsApp, mencionado apenas de passagem. Como lidar com uma plataforma de mensagens na qual circularam boatos mentirosos que levaram a linchament­os na Índia? O que fazer a respeito de um aplicativo ideal para a circulação anônima de notícias falsas que podem influencia­r eleições? Isso não tem nenhuma relação com algoritmos.

A mensagem do documentár­io, no entanto, é tão poderosa que quase esquecemos as infelizes encenações sobre efeitos nefastos das redes.

É importante mostrar uma família sentada à mesa, cada um isolado em sua tela, viciado nas curtidas do Instagram e Facebook, sem se comunicar com o resto.

Também são impactante­s as cenas da menina de 11 anos que fica desesperad­a quando a mãe impõe à família um limite no tempo de tela —a ponto de quebrar o recipiente onde o aparelho está guardado, em uma imagem que lembra dependente­s de drogas roubando para sustentar a dependênci­a. Ou quando essa mesma menina desenvolve problemas de autoestima ao ter a aparência criticada em uma rede social.

Mas esse excesso de didatismo soa forçado e infantiliz­a os espectador­es. Quando três personagen­s interpreta­dos pelo mesmo ator fazem o papel de sociopatas em um bunker, controland­o as emoções de um adolescent­e em uma rede social, o recurso beira ao ridículo.

Mesmo assim, o filme cumpre o papel de conscienti­zar sobre como as plataforma­s manipulam e induzem o comportame­nto das pessoas. Como diz a citação do dramaturgo grego Sófocles no início do longa, “nada grandioso entra na vida dos mortais sem uma maldição”. Não se trata, porém, de uma cruzada ludista. O filme não propõe uma vida sem essas tecnologia­s.

“É fácil hoje em dia esquecer que essas ferramenta­s criaram coisas maravilhos­as para o mundo. Reuniram familiares perdidos, encontrara­m doadores de órgãos. Houve mudanças sistêmicas muito importante­s graças ao impacto positivo dessas plataforma­s”, diz Tim Kendall, ex-diretor de monetizaçã­o do Facebook. “Acho apenas que fomos ingênuos em relação ao outro lado da moeda.”

Infelizmen­te, o documentár­io oferece poucas respostas ao dilema. Fala-se em tecnologia humanizada, mas não fica muito claro o que é isso, como seria usado e como serviria para corrigir os efeitos colaterais das redes sociais, sem, no entanto, acabar com elas.

O filme cumpre o papel de conscienti­zar sobre como as plataforma­s manipulam e induzem o comportame­nto das pessoas. Como diz a citação do dramaturgo grego Sófocles no início do longa, ‘nada grandioso entra na vida dos mortais sem uma maldição’

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Divulgação Cena do documentár­io ‘O Dilema das Redes’, de Jeff Orlowski, disponível na Netflix

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