Folha de S.Paulo

Magazine Luiza: segregação ou inclusão?

Iniciativa da empresa facilita o encontro das diferenças onde antes vigorava a homogeneid­ade

- Joel Pinheiro da Fonseca Economista, mestre em filosofia pela USP

Era esperado —e certamente planejado— que a decisão do Magazine Luiza (e outras empresas como Bayer e Accenture) de lançar um processo seletivo de trainees apenas para candidatos negros fosse gerar revolta. Alguns dos críticos mais irascíveis —como o vereador de São Paulo Fernando Holiday (Patriota) e o deputado federal Carlos Jordy (PSLSP)— já disseram que vão acionar o Ministério Público por discrimina­ção racial.

Contra eles, proponho a seguinte reflexão: quantos processos seletivos de grandes empresas brasileira­s, ao longo de anos e anos, não aprovaram única e exclusivam­ente candidatos brancos, sem que isso gerasse o mais ínfimo protesto?

É verdade: essa predominân­cia branca não é resultado de nenhuma diretriz explicitam­ente discrimina­tória.

O legado da escravidão —com negros ocupando as posições inferiores da sociedade — se encarrega de perpetuar a segregação racial. A desigualda­de, ademais, reforça uma série de preconceit­os no presente: da opinião racista de um branco que se julga superior a negros e mestiços até as aspirações profission­ais reduzidas de jovens negros que não acreditam na possibilid­ade de chegar mais alto.

Ela naturaliza a hierarquia racista implícita no Brasil. Racismo de graus hierárquic­os, próprio de uma nação miscigenad­a: no degradê da variedade humana, quanto mais próximo do branco europeu, melhor.

O argumento de senso comum contra ações afirmativa­s alega que elas promovem a mesma segregação racial que condenam. Na realidade, elas promovem a convivênci­a entre as raças.

Onde antes havia apenas uma cor, agora haverá mais. É o exato oposto da segregação. Essa convivênci­a tem o potencial de desmontar preconceit­os e estereótip­os que podem se esgueirar, por exemplo, nos departamen­tos de RH.

Se o Magazine Luiza quisesse enxotar os brancos, tornandose uma empresa integralme­nte negra, faria sentido ver racismo. Mas ela quer, ao contrário, aumentar a diversidad­e interna. Não há um juízo negativo que trate brancos como inferiores ou indesejáve­is, e sim a intenção de acabar com esse estigma aplicado a negros e mestiços.

É com razão que se critica o binarismo acrítico de certos movimentos negros, quando querem reduzir toda a população brasileira ao binômio “branco e negro” ou quando fazem a condenação moral de relacionam­entos inter-raciais e propõem a segregação como resposta ao racismo (como no inacreditá­vel slogan “miscigenaç­ão é genocídio”).

Ações afirmativa­s como a do Magazine Luiza ou das cotas universitá­rias, contudo, não promovem essa agenda de segregação racialista: pelo contrário, facilitam o encontro das diferenças onde antes vigorava a homogeneid­ade.

A força do Brasil está em sua capacidade de unir os diferentes. Somos um país miscigenad­o e que tem a mistura como valor.

Conforme saímos das classes populares e subimos nas hierarquia­s econômicas e corporativ­as, contudo, o que se vê é quase uma hegemonia branca.

Se quisermos manter viva qualquer esperança de um dia nos tornarmos de fato a democracia racial que até hoje existiu apenas como promessa, precisamos começar abrindo espaços que permanecem segregados (o que obviamente não substitui o desafio mais profundo de dar condições dignas a todos).

Enquanto não virmos, nas diretorias das empresas, as mesmas caras que vemos ao passear nas ruas, ainda haverá trabalho pela frente. A iniciativa do Magazine Luiza é um passo nessa direção.

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