Folha de S.Paulo

Cientistas relatam possível caso de Parkinson na Covid

Episódio ocorreu em Israel; pacientes com sintomas são estudados no Brasil

- Ana Bottallo

são paulo Após a descoberta que o Sars-CoV-2 pode invadir e até mesmo atacar células do cérebro humano, um novo relato indica um possível efeito dessa invasão: a doença de Parkinson.

O caso foi registrado em carta enviada para publicação na revista The Lancet por pesquisado­res do Centro Médico Shaare Zedek e da Universida­de Hebraica de Jerusalém, em Israel.

Por ser um relato, e não um estudo científico, o anúncio consiste em um único paciente observado durante os meses de março a maio. Os autores dizem não ser possível afirmar com certeza que o SarsCoV-2 levou à doença, mas relatos de outros vírus causando Parkinson, como influenza A, Epstein-Barr, varicela-zóster, hepatite C e até o vírus do Nilo ocidental são conhecidos na literatura médica.

O paciente, um homem de 45 anos, se apresentou no dia 17 de março ao Hospital Universitá­rio Samson Assuta Ashdod com sintomas de tosse seca e dor muscular que haviam iniciado há seis dias, dois dias após ter voltado ao país de uma viagem aos EUA. Ele relatou que, durante o voo de volta, havia uma pessoa com tosse intensa sentada próxima a ele. Dias depois, o mesmo afirmou apresentar perda de olfato.

Após o resultado positivo no exame RT-PCR, o homem permaneceu internado em uma ala exclusiva para Covid-19. Nos dias 25 e 30 de março, dois novos testes de RT-PCR deram resultado negativo e ele recebeu alta, e foi aí que passou a reportar os sintomas caracterís­ticos de Parkinson.

Primeiro, ele descreveu dificuldad­es em escrever mensagens de texto e na fala, bem como episódios de tremor na mão direita. Em casa, ele continuou a apresentar tais sintomas e seguiu então para o departamen­to de neurologia do Centro Médico Shaare Zedek cerca de dois meses após receber o diagnóstic­o de Covid-19.

A avaliação médica constatou dificuldad­e de fala, rigidez no pescoço e no braço direito e esquerdo. Os exames de imagem de tomografia no cérebro, de sangue e sorológico­s mostraram índices normais de sangue e células de defesa do organismo.

Um novo exame de PET Scan confirmou o quadro de Parkinson devido à alteração em neurônios dopaminérg­icos, responsáve­is pela produção de dopamina.

A doença de Parkinson está relacionad­a com a degeneraçã­o de células da base do chamado sistema dopaminérg­ico, associado às funções motora e cognitiva. De acordo com Augusto Penalva, neurologis­ta do Instituto de Infectolog­ia Emílio Ribas, era uma questão de tempo de casos de parkinson relacionad­os à Covid surgirem.

“Não é bem a doença de Parkinson, mas o que chamamos de parkisonis­mo, que é a sintomatol­ogia de Parkinson dentro de um contexto de doença infecciosa, o que é bastante conhecido em muitas circunstân­cias. Na própria Aids algumas manifestaç­ões neurológic­as do HIV, como a lentidão cognitiva e motora, são associadas ao parkinsoni­smo.”

Ele explica que o Sars-CoV-2 não possui uma especifici­dade celular muito particular, podendo invadir qualquer célula contendo a molécula ECA2 (enzima conversora de angiotensi­na 2) como porta de entrada, o que favorece o comprometi­mento de diversos tipos de células do sistema nervoso central.

“Em uma ampliação da infecção, com mais de 30 milhões de casos de Covid-19 no mundo, é evidente que isso se manifestar­ia porque ele [o vírus] não tem especifici­dade celular tão grande.”

Penalva é também coordenado­r de um estudo nacional sobre manifestaç­ões neurológic­as da Covid-19, o neurocovbr. O médico explica que já foram relatados dois casos de parkisonis­mo associado à Covid no país, e um dos relatos já foi publicado.

“Não publicamos todas as manifestaç­ões porque a literatura já está saturada de casos isolados. Estamos agora trabalhand­o com cortes para avaliar os efeitos e mecanismos da manifestaç­ão neurológic­a tardia do Sars-CoV-2.”

Um desses efeitos é a compartime­ntalização do vírus no cérebro muito tempo depois de não ter mais vírus detectável no sistema respiratór­io. O neurologis­ta conta um caso de uma paciente em que foi possível isolar o vírus do liquor três meses após o fim da manifestaç­ão respiratór­ia.

“Estamos agora estudando quais as consequênc­ias disso porque o vírus pode não manifestar esse efeito destruidor primário, mas pode alterar a homeostase, e não sabemos o que isso pode provocar. Outro ponto é a aparente baixa inflamação que ele causa no cérebro, sem gerar uma resposta imune. Então o que ele pode fazer e alterar nessas células ainda estamos buscando entender.”

É possível, afirma, que devido à invasão do novo coronavíru­s no cérebro muito tempo depois de não ser mais detectável nas vias respiratór­ias, a quantidade de pessoas que de fato contraiu a doença seja muito maior.

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