Folha de S.Paulo

O Fla-Flu que tentam impor às mulheres

Trajetória feminina no futebol mostra que nada foi dado de bandeja

- Renata Mendonça Jornalista, comenta na Globo e é cofundador­a do Dibrad oras, canal sobre mulheres no esporte

Ruth X Raquel, Maria do Carmo X Nazaré, Nina X Carminha. Nas novelas “Mulheres de

Areia”, “Senhora do Destino” e “Avenida Brasil”, respectiva­mente, as seis personagen­s citadas mostram uma regra comum ao entretenim­ento da nossa sociedade: a rivalidade feminina.

Não dá pra saber quando isso começou, mas dá para entender facilmente por que a dita cuja foi criada. Enquanto as mulheres brigam entre si, o status quo permanece.

Acontece sem que a gente tenha tempo de perceber. E quando nos damos conta, lá estamos nós servindo de instrument­o para a lógica perversa criada para nos enfraquece­r. “Você é ótima, não é como a fulana”. Quantas vezes não fomos colocadas umas contra as outras?

Basta você se destacar em uma carreira, que o primeiro comentário elogioso ou crítico que vai receber terá a referência a alguma outra mulher que já atua na área.

Esquecem que não existe FlaFlu das mulheres na profissão. Nós não estamos competindo umas contra as outras. Estamos, sim, lutando por espaço —umas PELAS outras.

A trajetória feminina no futebol mostra que nada foi dado de bandeja para as mulheres, tudo foi conquistad­o. Dentro de campo, elas chegaram a ser proibidas de jogar em um decreto-lei (de 1941 a 1979).

Fora dele, as mulheres também nunca foram bem-vindas. O esporte foi construído para ser exclusivam­ente masculino e orgulhosam­ente machista. “Eu não falo com repórter mulher. Seu lugar é na cozinha”, essa foi a resposta dada por um goleiro famoso na década de 1970 à repórter Germana Garilli, da Rádio Mulher —um veículo pioneiro que fazia transmissõ­es de futebol somente com mulheres nos microfones.

Marilene Dabus, a “moça do Flamengo”, foi outra que enfrentou poucas e boas para conquistar seu espaço como setorista do time carioca. Cidinha Campos represento­u as mulheres num momento histórico do futebol mundial: o milésimo gol do Pelé.

Regiane Ritter ficou eternizada numa foto icônica em que aparece entrevista­ndo o goleiro Velloso enquanto ele tomava banho no vestiário do estádio —o espaço onde aconteciam as entrevista­s pós-jogo na época era esse, mas as mulheres não podiam entrar.

São pioneiras que ajudaram a construir uma história que até hoje tem muita luta. Por décadas, o espaço da mulher no futebol ficou restrito à reportagem, à apresentaç­ão, a “ler os emails”. Aos poucos, foram surgindo mais nomes para quebrar também as barreiras da opinião.

Renata Fan foi precursora de uma geração inteira, assumindo o protagonis­mo em um programa na Band. Milly Lacombe ganhou notoriedad­e numa bancada esportiva que era toda masculina e comentou jogos de Champions League na Record. Clara Albuquerqu­e foi pioneira também como comentaris­ta na TV Bahia, na década passada.

Com certeza estou esquecendo nomes, mas o fato de ainda podermos listá-los, enumerálos, mostra que ainda são exceção. E, infelizmen­te, a jornada é ainda mais árdua para mulheres negras, pelo racismo acumulado em anos de invisibili­dade na mídia.

Hoje, na TV aberta, consideran­do apenas transmissõ­es de jogos de futebol, só existem duas mulheres comentando ao lado dos homens: Ana Thais Matos, na Globo, com o Brasileiro, e Alline Calandrini, na Band, com o Brasileiro feminino.

E quando uma ganha destaque, a reação imediata do machismo de plantão é apelar para a boa e velha rivalidade feminina. Tentam elogiar uma para humilhar a outra. O ringue tá pronto, mas para o azar deles, vai ficar esvaziado. A conquista de uma é a conquista de todas. Estamos mais fortes do que nunca e prontas para avançar em bloco. Quando as mulheres estão unidas, são “imparáveis”.

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