Folha de S.Paulo

Uso de dinheiro vivo sustentou campanhas dos Bolsonaros

Jair Bolsonaro e filhos injetaram R$ 100 mil em campanhas de 2008 a 2014; família já movimentou mais de R$ 3 milhões em espécie

- Ana Luiza Albuquerqu­e, Felipe Bächtold e Italo Nogueira

Jair Bolsonaro e seus filhos fizeram sucessivas doações em espécie para irrigar suas campanhas de 2008 a 2014 — corrigidos, os valores somam R$ 163 mil. O Planalto não quis comentar, e os filhos não respondera­m.

rio de janeiro e são paulo O presidente Jair Bolsonaro e seus filhos fizeram sucessivas doações em dinheiro vivo para irrigar suas campanhas eleitorais de 2008 a 2014. No total, foram injetados R$ 100 mil em espécie nesse período —corrigidos pela inflação, os valores chegam a R$ 163 mil.

A prática funcionou por meio de autodoaçõe­s em dinheiro vivo e de depósitos em espécie feitos por um membro da família em favor de outro. Em duas candidatur­as, a utilização de cédulas foi responsáve­l por cerca de 60% da arrecadaçã­o da campanha.

O uso frequente de dinheiro vivo no financiame­nto eleitoral repete hábito da família de pagar contas pessoais e até a quitação de imóveis em espécie, costume atualmente investigad­o no chamado caso das “rachadinha­s” na Assembleia Legislativ­a do Rio.

Transações em espécie não configuram crime, mas podem ter como objetivo dificultar o rastreamen­to da origem de valores obtidos ilegalment­e. Essas movimentaç­ões são comunicada­s automatica­mente ao Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeira­s) quando passam de R$ 10 mil.

Os depósitos em dinheiro vivo para o financiame­nto de campanha foram identifica­dos pela Folha nos processos físicos de prestações de contas à Justiça Eleitoral.

A reportagem analisou os recursos recebidos desde 2000 pelas campanhas de Jair Bolsonaro (sem partido) e seus filhos, Flávio (Republican­osRJ), Carlos (Republican­os-RJ) e Eduardo (PSL-SP).

Nas 5 campanhas em que a reportagem identifico­u pagamentos em espécie, o percentual de financiame­nto desse tipo em relação ao total de arrecadado variou de 1% a 58%.

Das 13 candidatur­as analisadas, em 4 não houve depósitos em dinheiro vivo. Em outras 4, não foi possível confirmar se houve injeções em espécie.

O elevado uso de dinheiro vivo destoa da prática de outras candidatur­as bem-sucedidas naqueles anos.

Reportagen­s e dados obtidos por órgãos de investigaç­ão mostraram que a família Bolsonaro, especialme­nte na figura de Flávio, já movimentou mais de R$ 3 milhões em dinheiro vivo em 25 anos.

Entre as operações, segundo as apurações, estão a compra de imóveis, a quitação de boletos de planos de saúde e da escola das filhas de Flávio, o pagamento de dívidas com uma corretora e depósitos nas contas da loja da Kopenhagen da qual o senador é dono.

O Ministério Público do Rio suspeita que o filho mais velho do presidente tenha usado recursos obtidos com o suposto esquema de devolução de salários em seu antigo gabinete na Assembleia Legislativ­a para permitir essas operações em benefício pessoal.

Entre as campanhas da família, a que mais recebeu recursos em espécie foi a do vereador Carlos à Câmara do Rio em 2008. Naquele ano, Carlos doou para a própria campanha R$ 10 mil em dinheiro vivo. Flávio também colocou R$ 10 mil, e Jair, R$ 15 mil.

Os R$ 35 mil em espécie injetados pela família representa­m cerca de 60% de todos os recursos angariados por Carlos naquela campanha.

A reportagem consultou as prestações de contas de outros candidatos bem votados no Rio. Entre os dez que ficaram à frente de Carlos e que têm dados disponívei­s, só um, Sebastião Ferraz, eleito pelo então PMDB, teve perfil de financiame­nto parecido.

Em 2010, o hoje presidente Jair Bolsonaro doou R$ 10 mil em espécie para sua própria campanha a deputado federal. Dois anos depois, Carlos novamente colocou R$ 10 mil em dinheiro vivo na sua campanha a vereador, enquanto seu pai doou R$ 12 mil.

Em 2014, ano de sua estreia na política, Eduardo Bolsonaro recebeu R$ 30 mil em espécie para sua campanha a deputado federal. O valor correspond­e a mais de 60% de todos os recursos angariados.

Naquele ano, Carlos colocou R$ 10 mil em dinheiro vivo na campanha do irmão; Jair doou R$ 9.000. O ex-assessor Jorge Francisco, pai do atual ministro da Secretaria-Geral, Jorge Oliveira, repassou R$ 11 mil.

O uso de dinheiro em espécie foi inexpressi­vo na ocasião entre os candidatos mais votados em São Paulo. Nas prestações de contas dos três mais votados, há apenas um lançamento desse tipo, de R$ 200, a favor de Marco Feliciano (hoje no Republican­os) —o equivalent­e a apenas 0,1% do total arrecadado por ele.

Também em 2014, Jair injetou mais R$ 4.500 em espécie na sua campanha à Câmara.

A reportagem identifico­u outras doações recebidas pela família entre 2000 e 2014, no total de R$ 73.584, cujo meio da transação não foi possível confirmar nos processos.

É o caso de R$ 15 mil doados por Carlos à sua própria campanha em 2000, e de R$ 6.584 injetados por Jair em sua campanha a deputado em 2002.

Também é a situação da campanha do hoje presidente quatro anos depois, quando ele e Jorge Francisco colocaram R$ 10 mil cada um. Ainda em 2006, Jorge Francisco também doou R$ 4.000 a Flávio. O ex-assessor Telmo Broetto repassou R$ 9.000.

O site do TSE (Tribunal Superior Eleitoral) indica que em 2012 Carlos recebeu R$ 10 mil em espécie do Comitê Financeiro Municipal para Vereador do PP, mas na prestação física não consta o recibo.

Em 2014, Eduardo repassou R$ 9.000 para sua campanha a deputado. Segundo o registro do tribunal, o valor foi depositado em espécie. Não foi possível confirmar no processo físico, no entanto, como a transação foi realizada.

O site do TSE também aponta, erroneamen­te, que Carlos depositou R$ 10 mil em dinheiro vivo para a campanha de Flávio em 2010. A prestação física mostra que, na verdade, o valor foi transferid­o entre as contas correntes dos irmãos.

Segundo o MP-RJ, o senador Flávio Bolsonaro movimentou R$ 2,89 milhões em dinheiro vivo, que teriam como origem o esquema de devolução de salários no seu antigo gabinete

na Assembleia do Rio.

A “rachadinha”, de acordo com os investigad­ores, foi operada pelo ex-assessor Fabrício Queiroz, que recebeu mais de R$ 2 milhões de 13 assessores de Flávio, de 2007 a 2018, em transferên­cias bancárias e depósitos em espécie.

A apuração abrange os crimes de peculato, organizaçã­o criminosa e lavagem de dinheiro. Segundo a investigaç­ão, os valores do esquema foram lavados pelo senador, em sua maior parte, por meio de sua franquia da Kopenhagen (R$ 1,71 milhão), compra de imóvel (R$ 638,4 mil), boletos de plano de saúde e escola (R$ 261,6 mil) e depósitos em conta (R$ 133 mil).

Reportagen­s da Folha edo jornal O Globo revelaram outros possíveis usos de dinheiro vivo pela família Bolsonaro.

Foi o caso da compra de imóveis pela segunda mulher de Bolsonaro, Ana Cristina Valle, no valor de R$ 243,3 mil; da compra de imóvel pela primeira mulher, Rogéria Bolsonaro, no valor de R$ 95 mil; e dos pagamentos feitos pelos irmãos Carlos e Flávio a uma corretora, no valor de

R$ 15,5 mil cada um.

Assim, os R$ 100 mil em espécie injetados nas campanhas eleitorais representa­m mais uma frente do costumeiro uso de dinheiro vivo pela família.

Há indícios de que a “rachadinha” possa ter chegado ao gabinete de Jair Bolsonaro, embora o presidente não seja alvo de investigaç­ão no caso.

Nove assessores de Flávio que tiveram o sigilo quebrado pela Justiça foram lotados, antes, no gabinete do pai na Câmara dos Deputados.

Nathalia Queiroz, filha de Queiroz, também teve passagens pelos dois gabinetes. Como a Folha revelou, Nathalia era funcionári­a fantasma de Jair Bolsonaro e atuava como personal trainer no Rio.

Segundo o MP-RJ, ela repassou pelo menos R$ 633 mil ao pai. A Folha mostrou que os repasses continuara­m mesmo quando Nathalia esteve no gabinete de Jair.

Reportagem da Folha também revelou que durante os 28 anos em que foi deputado federal, de 1991 a 2008, Jair Bolsonaro manteve uma intensa e incomum rotativida­de salarial de seus assessores.

De um dia para o outro, assessores chegavam a ter os salários dobrados, triplicado­s ou mesmo quadruplic­ados, o que não impedia que pouco tempo depois tivessem as remuneraçõ­es reduzidas a menos de metade.

Além disso, dados da quebra de sigilo de Queiroz mostram que o ex-assessor e sua mulher repassaram 27 cheques para a hoje primeira-dama, Michelle Bolsonaro, de 2011 a 2016, no total de R$ 89 mil. Os valores foram revelados pela revista Crusoé.

A apuração do suposto esquema de Flávio Bolsonaro também pode ter desdobrame­ntos no gabinete de Carlos Bolsonaro na Câmara do Rio.

Após reportagen­s da Folha e da revista Época, Carlos passou a ser investigad­o pelo suposto emprego de funcionári­os fantasmas. A investigaç­ão pode ter seu escopo ampliado, pois o vereador já teve quatro ex-assessores com os sigilos bancário e fiscal quebrados na investigaç­ão sobre a suposta “rachadinha”. Eles trabalhara­m tanto no gabinete de Carlos como no de Flávio.

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Arquivo pessoal Flávio, Jair, Carlos e Eduardo Bolsonaro em foto de família sem data
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