Violência, censura e fake news dominam reestreia do festival É Tudo Verdade
Festival de documentários É Tudo Verdade tem filmes que traçam um paralelo contundente da história com a atualidade, abordando violência, censura e fake news
Na ditadura militar, o pai de Carol Benjamin foi preso, torturado e exilado. A avó dela, antes uma dona de casa, passou a ser militante, para tentar libertar o filho dos horrores que sofria. Mesmo com o silêncio de César Benjamin sobre o período, sua filha sentiu que deveria levar a história para as telas.
Ela agora lança, no festival É Tudo Verdade, “Fico te Devendo uma Carta sobre o Brasil”, em que narra como a prisão de seu pai impactou várias gerações da família. Ele preferiu não participar das gravações, mas ela sentiu que era justamente por isso que o seu filme precisava ser feito.
“Eu queria que meu pai me desse um depoimento, então a negativa dele foi uma grande surpresa”, conta a cineasta. “Como documentarista, eu não pude me esquivar dessa questão. Esse silêncio me impactou de tal maneira que eu achei importante pontuar isso no filme. Existe nele um paralelo com a história política do Brasil, um país que não gosta de falar do passado.”
É para o passado, aliás, que o É Tudo Verdade parece se voltar neste ano, com diversos filmes abordando não só os anos de ditadura no Brasil, como também outras formas de autoritarismos de tempos idos —mas que dão sinais de retorno em muitos países.
Essas obras serão exibidas entre esta agora e o dia 4 de outubro, quando o É Tudo Verdade, maior festival de documentários da América Latina, comemora seus 25 anos. Originalmente, a edição deste ano do evento aconteceria em março, mas, com a Covid-19, ela precisou ser adiada.
Depois de passar por uma reformulação com ajustes em seu lineup, o festival enfim chega ao público com sua fatia mais prestigiosa —aquela com os filmes em competição. As exibições ocorrem, quase que totalmente, online. Uma parte do evento, no entanto, será presencial, já que a noite de abertura, para convidados, acontece no Belas Artes Drive-in, no Memorial da América Latina, em São Paulo.
A internet acabou estabelecendo um monopólio da programação. Mesmo no primeiro semestre, ela já havia servido de solução para que alguns filmes de seções paralelas pudessem ser exibidos próximos às datas antes planejadas para esta 25ª edição.
“Diante da pandemia, o nosso pensamento foi de fazer a maior parte do que não era competitivo naquele momento, porque seria um gesto de cumplicidade e de solidariedade com o público”, afirma Amir Labaki, diretor do É Tudo Verdade. “Pensamos, então, em preservar a parte competitiva para o futuro.”
A expectativa era que a pandemia desse sinais de melhora pouco depois. Mas, diante do ainda incerto cenário no Brasil, Labaki decidiu seguir em frente neste novo formato.
“Fico te Devendo uma Carta sobre o Brasil”, já anunciado lá atrás, continuou na seleção, dando o tom do evento deste ano, com produções nacionais e estrangeiras que abordam temas como extremismo, fake news e violência de Estado. “Festival é espelho e, se o mundo está atolado numa retomada autoritária, é natural e saudável que o cinema documental reflita isso”, diz Labaki, sobre a seleção.
“Uma das funções do documentário é nos ajudar a pensar o mundo, então não é à toa que neste ano a gente tenha filmes como ‘Silêncio de Rádio’, que mostra essa praga que voltou a se disseminar.”
A praga que Labaki lembra é a censura, tema do filme de Juliana Fanjul, que integra a mostra competitiva de longas internacionais. O documentário mostra a demissão de uma jornalista mexicana depois da cobertura de um caso de conflito de interesses envolvendo o então presidente de seu país, Enrique Peña Nieto.
Também entre os longas estrangeiros, os filmes que de alguma forma dialogam com o autoritarismo são “1982”, sobre a campanha midiática da ditadura argentina na Guerra das Malvinas, “Colectiv”, sobre uma fraude no sistema de saúde romeno, “Golpe 53”, sobre a derrubada do governo iraniano arquitetada por agentes americanos e britânicos, “O Rei Nu”, sobre movimentos civis no Irã e na Polônia em 1970 e 1980, e “Rolo Proibido”, sobre cineastas afegãos que combatem o Taleban.
Os assuntos levantados por essas produções também respingam nas seções de curtas do É Tudo Verdade e, claro, em outros selecionados da mostra competitiva de longas brasileiros. Nela, aparecem, por exemplo, “Libelu - Abaixo a Ditadura”, sobre a atuação do movimento estudantil nos anos 1970, “A Ponte de Bambu”, que aborda a repressão do governo na China, e “Segredos do Putumayo”, centrado em Roger Casement, que trabalhou para denunciar violações de direitos humanos.
Mas “Fico te Devendo uma Carta sobre o Brasil” talvez seja o filme que dialoga de forma mais contundente com o presente contexto de ascensão de um discurso autoritário e conservador, construindo, para isso, uma ponte entre o regime ditatorial e alguns discursos de Bolsonaro.
“Eu já estava fazendo o filme antes da eleição dele, mas esse novo contexto político me impactou e acabou entrando no documentário. Eu acrescentei uma camada ao filme, porque eu acredito que o cinema é sempre político, sempre depende de um contexto”, diz Carol Benjamin, a diretora.
“É devastador ver gente defendendo a ditadura hoje em dia. É de uma tristeza profunda ouvir alguém dizer que só sofreu quem merecia. Por isso achei importante trazer a minha avó para o filme, porque ela não fez uma opção, ela era dona de casa e mulher de um coronel. A vida dela foi atravessada por essa violência de Estado sem que ela quisesse.”
Segundo ela, foi difícil lidar com o que chama de “ressignificação do legado da ditadura” enquanto fazia o filme.
“Eu acredito que o cinema tem uma função social. Não sou ingênua de acreditar que o meu filme vá mudar a história de uma nação, mas o cinema como um todo, ao expressar os tempos em que vivemos, pode despertar novos sentimentos e até mesmo alterar a cultura de um país.”
25º É Tudo Verdade
Até 4 de outubro. Grátis. Confira a programação em etudoverdade.com.br