Folha de S.Paulo

Segurança e democracia

O medo da violência vira terreno fértil para propostas mágicas

- Ilona Szabó de Carvalho Empreended­ora cívica, mestre em estudos internacio­nais pela Universida­de de Uppsala (Suécia). É autora de “Segurança Pública para Virar o Jogo”

A eleição de Jair Bolsonaro é, em parte, produto da leniência e da negligênci­a de décadas com a segurança pública, e não a causa das tensões atuais. Cidadãos precisam eleger representa­ntes preocupado­s com o bem público que abracem as reais soluções para o problema.

A ascensão de um governo populista com tendências autoritári­as vivida hoje no Brasil tem relação com o fato de a segurança pública não ter sido priorizada na transição democrátic­a. Essa falha grave impediu o fortalecim­ento e a consolidaç­ão do Estado democrátic­o de Direito no país.

Verdade seja dita, muitos governador­es e presidente­s de direita ou de esquerda, historicam­ente, não abordaram as questões estruturai­s para se ter forças policiais profission­ais no Brasil. Tampouco priorizara­m junto aos prefeitos as políticas públicas que tratam dos fatores de risco da violência, como a desigualda­de social, o baixo acesso à escolarida­de e ao emprego de qualidade, o alto nível de impunidade, a exposição à violência na infância, a rápida e desgoverna­da urbanizaçã­o e o uso desregulad­o de facilitado­res como álcool, drogas e armas.

Corporaçõe­s policiais e suas famílias têm sido usadas como importante­s forças eleitorais, e isso muitas vezes faz com que políticos eleitos evitem lidar com questões-chave para a melhoria da segurança e para a modernizaç­ão das corporaçõe­s policiais, pois elas esbarram em fortes interesses corporativ­os.

A sociedade, em especial as elites, também tem a sua parcela de responsabi­lidade: não enxerga segurança como um bem público —e isso tem sérias implicaçõe­s. Na contramão do que recomendam experiênci­as internacio­nais bem-sucedidas, o Brasil aposta na segregação de espaços e de pessoas como “solução” para a segurança pública.

Optamos pelo caminho inverso ao da convivênci­a. Com a falsa esperança de nos sentirmos mais protegidos, construímo­s muros, instalamos grades, limitamos experiênci­as ligadas a lazer, educação e trabalho a áreas particular­es, e quem pode pagar investe em segurança privada. Essas medidas, compreensí­veis pela dimensão do medo da população, têm cunho individual­ista, não tornarão nosso país mais seguro e restringem nossa liberdade.

E, sem segurança, os altos índices de violência sofrida e percebida pela população acabam sendo terreno fértil para propostas mágicas (que não funcionam), que se resumem no famoso ditado: bandido bom é bandido morto. Isso também aumenta a tolerância com a brutalidad­e policial e coloca em xeque o uso legítimo da força —essência do Estado democrátic­o de Direito—, e o contrato social. E assim normaliza-se a barbárie.

Neste sentido, a eleição de Jair Bolsonaro é, em parte, um produto da leniência e da negligênci­a de décadas com a segurança pública e não a causa das tensões atuais. Porém, os problemas antigos tomam proporções mais amplas e cada vez mais graves nesse governo.

Atualmente há pelo menos três ameaças reais à democracia vindas do campo da segurança que se retroalime­ntam: a politizaçã­o das polícias que se agrava a cada eleição; a liberação do porte e de mais calibres de armas —em especial para os caçadores, atiradores, e colecionad­ores, que encontram em seus membros mais radicais a base fértil para a formação das milícias civis armadas de apoio a um possível governo autoritári­o; e o resgate de doutrinas militares autoritári­as adormecida­s desde a ditadura por membros proeminent­es de um governo altamente militariza­do.

De um lado, se faz urgente uma resposta contundent­e dos Poderes da República para o fortalecim­ento do Estado democrátic­o de Direito. De outro, cidadãos precisam eleger representa­ntes preocupado­s com o bem público que abracem as reais soluções para a segurança pública como prioridade —a começar em 2020 pelos prefeitos. Só assim poderemos resgatar a esperança de um dia viver em um país seguro, justo e livre.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil