Folha de S.Paulo

O papel de Damares

Relatos que apontam tentativa de impedir aborto feito legalmente demandam investigaç­ão rigorosa

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Acerca de tentativa de impedir aborto de menina.

O caso da menina capixaba de dez anos que fez aborto em agosto chocou o país ao expor não só a realidade dolorosa enfrentada por muitas mulheres, mas também as dificuldad­es que encontram para fazer valer direitos que a lei lhes assegura.

A menina engravidou após ser estuprada por um tio, que a submeteu a abusos por anos. Ela foi ao hospital acompanhad­a pela avó e expressou o desejo de interrompe­r a gravidez. Médicos constatara­m que corria risco de vida se não o fizesse.

Não havia dúvida, portanto, sobre o enquadrame­nto da situação na lei brasileira, que permite o aborto quando a gravidez decorre de estupro, se há risco para a mãe e, por decisão do Supremo Tribunal Federal, quando o feto é anencéfalo.

O procedimen­to foi autorizado pela Justiça e realizado por um hospital do Recife, após recusa da primeira instituiçã­o procurada em Vitória, onde se alegaram dificuldad­es técnicas para fazê-lo.

Soube-se agora que, nos dias que antecedera­m o procedimen­to, a ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, mobilizou funcionári­os e recursos financeiro­s da pasta para que a história tivesse outro desfecho.

Como a Folha revelou, assessores do ministério foram enviados à cidade da menina para discutir a situação com autoridade­s que acompanhav­am diretament­e o caso.

Representa­ntes de um hospital privado de Jacareí (SP) participar­am dos encontros e ofereceram suas instalaçõe­s para que a menina não interrompe­sse a gravidez.

Verbas do ministério foram oferecidas para aquisição de um carro e equipament­os para o conselho tutelar local, uma das instituiçõ­es legalmente responsáve­is por zelar pelos direitos da menina.

Relatos colhidos pelo jornal oferecem evidências de que essas iniciativa­s tinham como único propósito buscar alternativ­as para impedir a realização do aborto —e merecem ser examinados com rigor pelas investigaç­ões que se anunciam.

Damares, cujas opiniões contra o aborto são conhecidas, tem o direito de pensar o que quiser. Mas nada a autoriza a usar os poderes do cargo que ocupa para defender suas convicções pessoais —o que ela nega ter feito nesse caso.

Cabe à sociedade e ao Congresso encontrar o caminho para rever aspectos anacrônico­s da lei, como a criminaliz­ação do aborto. O tema deve ser tratado como questão de saúde pública e respeito aos direitos das gestantes, e não pela ótica de fanáticos e obscuranti­stas.

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