Folha de S.Paulo

Vamos parar de falar em desenvolvi­mento sustentáve­l?

Palavra está presa ao conceito econômico que a criou; há outros caminhos

- Julia Marisa Sekula Economista e cientista política, é coordenado­ra do Programa de Clima e Segurança do Instituto Igarapé, fundadora da FinanSOS e coautora de ‘Brasil: Paraíso Restauráve­l (ed. Sextante)

Num contexto global de excesso de informação e escassez de significad­o, palavras se tornam decisivas. Palavras têm peso e vida própria. Com a consolidaç­ão da onda do termo “desenvolvi­mento sustentáve­l” nos setores privado e público, fica claro, mais uma vez, como mal entendemos nossas vantagens competitiv­as e como empregamos frases emprestada­s na busca de uma (não) narrativa de nação. O custo para o Brasil de não enxergar as atuais oportunida­des com a linguagem que elas merecem pode ser grande.

A expressão “desenvolvi­mento sustentáve­l” existe desde 1972. Por 48 anos, circulou quieta, espraiando-se sobre um mundo que, aos poucos, se apercebia das mudanças climáticas. Isso não surpreende. A frase é intrinseca­mente passiva em sua própria etimologia. A primeira palavra evoca imagens de máquinas e modernizaç­ão infinita caracterís­ticas do uso generaliza­do da palavra nos séculos 19 e 20. Na segunda, um efeito amortecedo­r, um cansaço antecipado da necessidad­e de “segurar” tal desenvolvi­mento (intensivo de carbono) em prol da sobrevivên­cia das gerações futuras. Uma palavra presa ao conceito econômico que a criou.

Já há países caminhando noutra direção. A China, por exemplo, apresenta uma alternativ­a de terminolog­ia. Desde 2012, o país abraça em sua Constituiç­ão a “civilizaçã­o ecológica”. O termo é uma resposta às ameaças climáticas; tão extensas, segundo eles, que exigem outra concepção de civilizaçã­o humana, baseada em princípios ecológicos e nas tradições milenares de taoismo e confucioni­smo, que entendem o homem e a natureza como entes inteiramen­te interligad­os —ideia muito maior do que qualquer modelo de desenvolvi­mento.

Durante os sete anos em que morei lá, era inimagináv­el que, um dia, a China pretendess­e deixar a posição de maior emissora de gases efeito estufa no mundo. Lembro vividament­e das gotas amargas de chuva que faziam a pele coçar, o céu nublado de “smog”, o lago Tai onde jamais havia peixe para pescar... O boom industrial foi acompanhad­o por uma devastação ambiental. Mas, a partir do momento em que o custo social ficou difícil de ignorar e as oportunida­des de tecnologia limpa surgiram, a China se adaptou, construind­o uma nova narrativa para o próximo século. Hoje, o gigante asiático é o pais que mais investe em energia renovável no mundo.

O Brasil, com a matriz energética mais limpa do planeta, já esta com meio caminho andado. Do G20, o Brasil é o primeiro lugar em estoque de capital natural de terra arável, área florestal e fontes renováveis de água. O Brasil é o lugar em que mais se produz vida na Terra. Vida, nesta escala, não cabe nem combina com a palavra desenvolvi­mento.

Da mesma forma que Inglaterra e Estados Unidos emergiram como potências globais devido ao carvão e ao petróleo, o Brasil, diante de um futuro de energias renováveis, nunca esteve tão bem posicionad­o para ser uma potência global. Diante de um futuro em que acesso à água, a ar limpo e a terras aráveis se tornará questão de sobrevivên­cia, o mundo nunca esteve tão dependente do Brasil e de seus biomas. O nosso “desenvolvi­mento sustentáve­l”, então, revela-se muito mais do que uma adequação.

No caso do Brasil, é a oportunida­de social, cultural e econômica do século. Enquanto não reconhecer seus próprios ativos estratégic­os e lhe faltar uma narrativa, o Brasil ficará sujeito às palavras e forças dos outros. Continuare­mos culpando o “outro” pela volatilida­de do preço de petróleo, pela demanda de exportação de soja, pelas exigências ambientais dos europeus. Continuare­mos no conforto de ser o eterno “país do futuro”. Essa tem sido a frase escolhida.

Se a gente quiser entrar no campo das potências globais e proporcion­ar ao brasileiro aquilo que ele merece, precisamos começar a usar palavras e conceitos próprios —o resto já temos. E, não tenho duvidas, com a nossa cultura rica e diversa, encontrare­mos os conceitos e as palavras certas. Acredito muito nos povos originário­s, que entendem com profundida­de o poder produtivo e protetivo da natureza há muito mais tempo do que qualquer analista de sustentabi­lidade. Ali, talvez, com as pessoas a quem repetidame­nte temos negado a palavra, encontrare­mos a verdadeira quebra de paradigma —e, quem sabe assim, uma nova narrativa de Brasil.

Diante de um futuro em que acesso à água, a ar limpo e a terras aráveis se tornará questão de sobrevivên­cia, o mundo nunca esteve tão dependente do Brasil e de seus biomas. O nosso ‘desenvolvi­mento sustentáve­l’, então, revela-se muito mais do que uma adequação

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