Folha de S.Paulo

Discurso de caçamba de caminhão

Retórica defensiva de Bolsonaro para a ONU indica mudança de ares no Planalto

- Elio Gaspari Jornalista, autor de cinco volumes sobre a história do regime militar, entre eles “A Ditadura Encurralad­a” CS

Jair Bolsonaro abriu os debates da Assembleia Geral da ONU com um discurso de vereador em caçamba de caminhão. Defensivo, com momentos de delírio, viu-se “vítima de uma das mais brutais campanhas de desinforma­ção sobre a Amazônia e o Pantanal”.

Faz tempo, quando um oficial brasileiro perguntou ao general americano Vernon Walters quais eram os interesses do Estados Unidos na Amazônia, ele respondeu: “A Amazônia, é de vocês, cuidem dela”. Walters conhecia o Brasil como poucos, chegou a percorrer de carro a rodovia Belém-Brasília.

As imagens de satélites e as fotografia­s da floresta mostram que não se está cuidando direito da Amazônia. Bolsonaro, contudo, estava na sua realidade paralela. Falou mal dos outros, bem de si, de seu governo e reclamou do preço da cloroquina.

A retórica dos agrotroglo­ditas encurralou Bolsonaro e hoje o setor moderno do agronegóci­o faz o possível para se afastar dele. Afinal, já houve épocas em que o governo brasileiro viu-se em posições canhestras no cenário internacio­nal, mas d. Pedro 2º nunca saiu pela Europa defendendo a escravidão. Astuto, enquanto pode, fechou o acesso dos estrangeir­os à navegação na Amazônia. Fez muito bem, pois alguns burocratas americanos pensaram na possibilid­ade de mandar para lá seus negros. Esse foi um tempo em que o andar de cima nacional mamava no atraso mas fingia que era inglês. Pela primeira vez, desde a chegada das caravelas portuguesa­s, o governo brasileiro está orgulhosam­ente apenso à agenda do atraso.

A fala de Bolsonaro foi antecedida por um pronunciam­ento do ministro-general Augusto Heleno que denunciou “nações, entidades e personalid­ades estrangeir­as” com um “interesse oculto mas evidente” de “derrubar

o governo Bolsonaro”.

A retórica defensiva de Bolsonaro para a ONU e a denúncia de Heleno indicam que houve uma mudança de ares no Planalto. Em maio o capitão viase desafiado pelo Judiciário e dizia que “vou intervir”. Como e onde, nunca se soube, mas, na mesma linha, o general havia condenado uma iniciativa que “poderá ter consequênc­ias imprevisív­eis para a estabilida­de nacional”. No “vou intervir” estava implícita a ideia de que Bolsonaro dispunha de uma retaguarda, mas ela lhe faltou e as “consequênc­ias imprevisív­eis” ficaram momentanea­mente no campo da fantasia. Naqueles dias os mortos pela Covid eram 18 mil. Hoje são mais de 130 mil.

Ao contrário do que pensam o general Heleno e almas inquietas do Planalto, não há ninguém querendo “derrubar o governo Bolsonaro”. O presidente tem contas a ajustar com o Judiciário por coisas que acontecera­m antes de sua investidur­a e, ainda assim, seria exagero acreditar que desemboque­m num impediment­o. O verdadeiro jogo está na busca obsessiva pela reeleição e nisso pouco influirão “nações, entidades e personalid­ades estrangeir­as”. Tudo dependerá do desempenho do governo. Bolsonaro viu esse risco nos primeiros momentos da pandemia. Em março ele dizia: “Se a economia afundar, afunda o Brasil. E qual o interesse dessas lideranças políticas? Se acabar economia, acaba qualquer governo. Acaba o meu governo. É uma luta de poder”.

Luta-se pelo poder. Em maio, no ataque. Em setembro, na defesa.

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