Folha de S.Paulo

Discurso tem mais Trump e menos Olavo de Carvalho

- Igor Gielow

Jair Bolsonaro foi um bom discípulo de seu ídolo, Donald Trump, ao apresentar um previsível “outro lado” no discurso virtual na abertura dos debates da Assembleia Geral das Nações Unidas.

Dificilmen­te convencerá alguém, assim como o americano falou para convertido­s no discurso que transmitiu na sequência para um esvaziado plenário da ONU em Nova York.

Ciente de sua péssima imagem internacio­nal, Bolsonaro resolveu acusar os outros. Quase nenhuma menção aos quase 140 mil mortos pela Covid-19 no seu país, mas sobraram dedos apontados para os governador­es e o Judiciário, que deu autonomia a prefeitura­s e estados na crise. Até a hidroxiclo­roquina deu as caras.

Na defensiva, disse ser vítima de uma campanha de desinforma­ção na questão ambiental. Assim como Trump disse que a China é a fonte de todo mal na questão da pandemia, Bolsonaro afirmou que a inveja internacio­nal visando o agronegóci­o brasileiro está por trás das críticas que recebe na área.

Novamente, a realidade e o desmonte de instrument­os de controle de desmatamen­to e as críticas ao sistema de monitorame­nto de incêndios que costuma trazer más notícias para o governo foram ignoradas.

Houve uma acusação sem provas à ditadura de Nicolás Maduro quando afirmou que o derramamen­to de óleo na costa brasileira no ano passado teria sido criminoso e que teria envolvimen­to de produto venezuelan­o.

Direitos humanos, pedra no sapato do governo, foram tratados como alvo de tratamento exemplar no Brasil.

Nada de sobrenatur­al no texto lido, mas ele reflete uma nova realidade. Há um ano, em seu discurso inaugural na ONU, que durou o dobro do tempo, Bolsonaro apresentou-se ao mundo e embebeu sua fala com a verborragi­a ideológica de seu entorno mais radical.

Agora, com os discípulos de Olavo de Carvalho menos influentes no dia a dia da administra­ção, a menção ao caráter conservado­r e cristão atribuído ao brasileiro virou só uma frase. O combate à “cristofobi­a”, aceno usual à sua base evangélica, ficou “en passant”.

Aqui, a crítica feroz do grupo ao dito globalismo virou uma referência rápida à necessidad­e de reforma da Organizaçã­o Mundial do Comércio. A aniversari­ante ONU, 75 anos em outubro, ganhou até uma jura de amor.

Em consonânci­a com Trump e sua Guerra Fria 2.0, por outro lado, Bolsonaro disse que o 5G brasileiro está aberto a quem quiser, desde que respeite soberania, liberdade e proteção de dados. Para bom entendedor, é um recado à chinesa Huawei, a líder de infraestru­tura de redes que os EUA querem ver fora dos leilões da nova tecnologia em todo mundo: a China é uma ditadura, e Washington afirma que suas redes são inseguras e servem para espionagem.

Ao fim, houve a genuflexão básica a Trump. Se os acordos entre Israel e os países árabes são de fato um trunfo que o americano pode usar, saudar o fantasioso plano de paz que a Casa Branca apresentou no começo do ano para a questão palestina como promissor não passa de bajulação.

Novamente, nada inesperado ou que deverá mudar a forma com que o mundo enxerga o Brasil neste momento. E ficará por isso, pois na cosmogonia de Bolsonaro, tudo que não é aplauso é fake news.

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