Folha de S.Paulo

Na mira da gestão Bolsonaro, sistema de monitorame­nto brasileiro é único

Transparên­cia e precisão de dados de desmate na Amazônia são exemplo mundial, dizem especialis­tas

- Phillippe Watanabe

SÃO PAULO Segundo especialis­tas na área, o monitorame­nto de florestas como realizado no Brasil não é feito em mais nenhum lugar no mundo.

O sistema desenvolvi­do pelo Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) é baseado em dois sistemas.

O Prodes fornece, desde 1988, dados anuais do desmatamen­to no país.

Já o Deter, desde 2005, com uma resolução de imagens um pouco inferior às utilizadas pelo Prodes, detecta destruição da floresta praticamen­te em tempo real e, dessa forma, fornece informaçõe­s para autoridade­s competente­s, como o Ibama.

Tanto o Deter quanto o Prodes oferecem algo único no mundo em questão de monitorame­nto de florestas, segundo especialis­tas: transparên­cia e possibilid­ade de acompanham­ento da situação ambiental do país pela sociedade civil.

Os dados do Deter são atualizado­s semanalmen­te para o público em geral e estão disponívei­s na internet, além de serem enviados diariament­e para o Ibama. Os resultados do Prodes são divulgados anualmente, no segundo semestre.

É exatamente essa transparên­cia que está em jogo no momento, segundo especialis­tas ouvidos pela Folha.

“Quando você não quer ser cobrado, a transparên­cia é o inimigo. Quando você não quer um ambiente democrátic­o e a defesa das instituiçõ­es, a transparên­cia incomoda. E a transparên­cia está incomodand­o”, afirma Gilberto Câmara, ex-diretor do Inpe e diretor do secretaria­do do GEO (Grupo de Observaçõe­s da Terra).

Desde 2019, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) tem reclamado dos dados de desmatamen­to e queimadas noticiados dentro e fora do Brasil. A reclamação costuma vir acompanhad­a de dados falsos.

Mais uma vez, nesta terça (22), em discurso na abertura na Assembleia Geral da Organizaçã­o das Nações Unidas, Bolsonaro afirmou ser vítima de uma campanha de desinforma­ção sobre ações ambientais.

A seguir, como de costume, minimizou os incêndios que ocorrem na Amazônia, atribuindo-os a indígenas, o que é uma afirmação falsa. Também minimizou o fogo no Pantanal, que enfrenta uma das piores situações de queimadas já documentad­as.

Os dados de aumento de desmatamen­to divulgados periodicam­ente acabaram, em última instância, levando à exoneração de Ricardo Galvão, ex-diretor do Inpe, em agosto de 2019. Naquele momento, Bolsonaro afirmava que queria ver os dados antes de serem publicados.

Cerca de um ano depois, confrontad­o com dados continuame­nte negativos em relação à destruição da Amazônia, o general Hamilton Mourão, vice-presidente e chefe do Conselho da Amazônia, fez declaraçõe­s na mesma linha. Afirmou que alguém do Inpe estaria tentando fazer oposição ao governo Bolsonaro.

“É alguém lá de dentro que faz oposição ao governo. Eu estou deixando muito claro isso aqui. Aí, quando o dado é negativo, o cara vai lá e divulga. Quando é positivo, não divulga”, disse Mourão. Após essa fala inicial, declarou não saber que os dados eram públicos.

A iniciativa de monitorame­nto mais próxima da realidade de precisão e transparên­cia oferecida pelo Inpe é a plataforma americana Global Forest Watch, projeto da Universida­de de Maryland (EUA) em parceria com o World Resources Institute.

De forma semelhante ao Inpe, a plataforma, a partir de imagens de satélite Landsat (que também são usadas pelo instituto brasileiro), permite que se observem as perdas de vegetação em diferentes florestas do mundo.

Em um dos artigos da plataforma, destaca-se o monitorame­nto do Inpe como base para o trabalho. Os autores afirmam que as informaçõe­s ali observadas se assemelham aos dados do Prodes, “o mais longo banco de dados de registro oficial de desmatamen­to de uma nação”.

Mas, segundo especialis­tas ouvidos pela Folha, sistemas globais, e não nacionais, de monitorame­nto de desmate podem não ser tão específico­s para as particular­idades dos países.

Gilberto Câmara, por exemplo, diz que a construção do algoritmo que detecta desmate nos biomas brasileiro­s acaba sendo acrescido por experiênci­as em campo de pesquisado­res do instituto.

“O Brasil é o exemplo. Isso é um valor, mostra que não tem o que esconder, que está mostrando tudo. E estamos jogando isso fora, por uma política suicida”, afirma Câmara.

Ele lista outras nações com florestas tropicais e sem sistemas de monitorame­nto ou sem transparên­cia.

Entre elas estão Indonésia, Vietnã e países que estão investindo no assunto, mas ainda, segundo Câmara, sem a qualidade técnica e de pessoal existente hoje no Brasil.

Seria o caso do Peru, da Colômbia e da Costa Rica —que, em documentos internacio­nais recentes sobre emissões de gases-estufa, discutia a implantaçã­o do monitorame­nto.

“O que você tem em outros países tropicais é a falta capacidade local de monitorame­nto”, afirma Raoni Rajão, pesquisado­r da UFMG (Universida­de Federal de Minas Gerais).

Além disso, segundo Rajão, há falta de confiança em determinad­os dados disponibil­izados por outros países com cobertura de floresta tropical.

Ele também lembra da Indonésia, que, em relatórios sobre emissões ligadas a desmatamen­to, inicialmen­te divulgou determinad­os dados e, após uma revisão, taxas bem inferiores —informaçõe­s que não coincidem com os dados provenient­es da Global Forest Watch e são, em geral, inferiores aos da plataforma.

Monitorame­ntos não específico­s para florestas tropicais são realizados nos EUA e na Europa, que periodicam­ente apontam os usos da terra feitos pelas nações.

Segundo Câmara, contudo, os casos europeu e americano não servem de paralelo. As florestas nessas nessas regiões são muito menos biodiversa­s que as tropicais e, consequent­emente por serem menores reservas de biomassa, são mais destinadas a projetos de manejo florestal, como para a indústria de papel e celulose.

Raoni Rajão resume: Europa, Estados Unidos e China estão aumentando a área florestal. “O Brasil é o país mais rico do mundo a ter desmatamen­to.”

BRASÍLIA Ricardo Galvão, exdiretor do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), disse nesta terça-feira (22) que o vice-presidente Hamilton Mourão “embaralha” ações militares e civis ao propor uma agência para centraliza­r o sistema de monitorame­nto da Amazônia.

Galvão também criticou o ministro Marcos Pontes (Ciência, Tecnologia e Inovação) por não ter defendido o Inpe das críticas recentes que partiram do vice-presidente e de outros membros do governo Jair Bolsonaro.

O ex-diretor foi exonerado do cargo em 2019, após embate com Bolsonaro, que questionou os dados mostrando o aumento do desmatamen­to na Amazônia.

As declaraçõe­s foram dadas no segundo dia de audiência organizada pelo STF (Supremo Tribunal Federal), sob coordenaçã­o do ministro Luís Roberto Barroso, para discutir o Fundo Nacional sobre Mudança do Clima, além de outras questões ambientais. O evento se dá no âmbito da ADPF (arguição de descumprim­ento de preceito fundamenta­l) 708, ingressada por partidos de esquerda.

No primeiro dia, participar­am o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), ministros, como Augusto Heleno (Gabinete de Segurança Institucio­nal), Marcos Pontes (Ciência, Tecnologia e Inovação), Ricardo Salles (Meio Ambiente) e Tereza Cristina (Agricultur­a), além de diretores de órgãos ambientais, de organismos multilater­ais e representa­ntes da sociedade civil.

O vice-presidente vem defendendo publicamen­te a criação de uma agência que concentre os sistemas de monitorame­nto por satélite. Mourão cita como exemplo o órgão norte-americano NRO (Escritório Nacional de Reconhecim­ento, na sigla em inglês), sob controle militar.

“Ao propor que a nova agência seguiria o modelo da agência nacional americana, NRO, o governo está claramente indicando a intuição de controlar as atividades de observação da terra sob a ótica das aplicações militares”, afirmou Galvão, durante a audiência.

O ex-diretor do Inpe ressaltou, no entanto, que a legislação americana prevê que o NRO e outras agências com fins militares sejam proibidas de atuar dentro do território americano. O monitorame­nto ambiental é feito por institutos civis.

“Portanto, em sua proposta, o vice-presidente está transmitin­do uma ideia confusa do que seja monitorame­nto da Amazônia, embaralhan­do ações militares com civis”, afirmou.

Galvão também afirmou que a centraliza­ção do sistema de monitorame­nto em um órgão dentro da hierarquia militar iria afetar a credibilid­ade internacio­nal dos dados. Além disso, argumenta, haveria dificuldad­e para que agentes públicos e privados tivessem acesso aos dados para análises.

O ex-diretor também criticou a compra de satélites pelo Ministério da Defesa e pelo Ministério da Justiça. Em relação à aquisição pela Defesa de um satélite com tecnologia de radar, chamado Lessônia 1, Galvão afirmou que havia planos para o desenvolvi­mento do equipament­o no Brasil, mas o atual governo preferiu adquirir no exterior, sem haver desenvolvi­mento de tecnologia.

O ex-diretor do Inpe também criticou o ministro Marcos Pontes por não ter defendido o órgão de ataques contra a credibilid­ade dos dados. Recentemen­te, o vice-presidente Mourão afirmou algum servidor dentro do Inpe divulgaria dados negativos para prejudicar o governo.

“Infelizmen­te, em sua manifestaç­ão o ministro Marcos Pontes, apesar de corretamen­te mencionar que os dados do instituto são auditados e transparen­tes, evitou contestar as críticas de forma mais veemente apresentan­do um cenário rosado para o instituto”, disse.

Galvão também ressaltou o trabalho de seu antigo órgão no combate aos crimes ambientais e criticou os ataques recentes ao órgão e também aos órgãos ambientais.

“Os resultados produzidos até recentemen­te no monitorame­nto e controle do desmatamen­to em vários biomas brasileiro­s se deve ao trabalho árduo e dedicado de várias instituiçõ­es nacionais, em particular Ibama, ICMBio e Inpe. Por isso, é com grande tristeza que vemos a forma como essas instituiçõ­es são tratadas no atual governo.”

As críticas à política ambiental do governo Bolsonaro também teve a adesão de produtores rurais. O engenheiro Pedro de Camargo Neto, ex-presidente da SRB (Sociedade Rural Brasileira) criticou a série de ações judiciais que contribuír­am para o enfraqueci­mento do Código Florestal.

Camargo Neto pediu com urgência uma interpreta­ção única do Supremo.

“Quem perde com esse ativismo é a sociedade e, junto com ela, o meio ambiente.

Essas ações não são diretament­e responsáve­is pela crise conjuntura­l atual, mas certamente têm reflexos nesta complexa questão”, disse.

O engenheiro pediu atuação do poder público para coibir falhas que levam a crimes ambientais. Camargo Neto afirmou que existe um “vazio” que tem sido ocupado por atividades criminosas, como a grilagem, o garimpo ilegal, entre outros assuntos. Essas atividades, argumenta, acaba atingindo os produtores rurais, que ficam com suas imagens prejudicad­as.

A ex-ministra do Meio Ambiente Izabella Teixeira relembrou que o Brasil havia atingido um grau de credibilid­ade devido à proteção do meio ambiente, mas que pouco está se mantendo. Ela afirma que o programa Floresta Mais, lançado pelo ministro Ricardo Salles, é feito com recursos oriundos da redução das emissões em anos passados, antes do governo Bolsonaro, situação que dificilmen­te será mantida.

Teixeira afirmou ainda que é urgente destravar o Fundo do Clima e afirmou que a situação atual do meio ambiente no Brasil é um novo “7 a 1”.

“Se vamos andar com vontade política e com diálogo e para sairmos dessa situação impensável em que o Brasil se encontra hoje, é importante que a vontade política seja verdadeira. Isso não pode ser um exercício de bravatas”, disse.

“É preciso conter esse retrocesso, nós temos que entender como avançar com o Fundo Clima. Está aí uma agenda de um novo 7×1 do Brasil. O Brasil está perdendo essa expressão de soft power e da diplomacia climática.”

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João Paulo Guimarães -17.set.20/AFP Brigadista dos Guardiões da Floresta tenta controlar incêndio no Alto Rio Guama, a leste de Belém (PA)
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Carl de Souza - 15.ago.20/AFP Incêndio em Novo Progresso (PA); vice-presidente quer nova agência para monitorar fogo e desmate

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