Na mira da gestão Bolsonaro, sistema de monitoramento brasileiro é único
Transparência e precisão de dados de desmate na Amazônia são exemplo mundial, dizem especialistas
SÃO PAULO Segundo especialistas na área, o monitoramento de florestas como realizado no Brasil não é feito em mais nenhum lugar no mundo.
O sistema desenvolvido pelo Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) é baseado em dois sistemas.
O Prodes fornece, desde 1988, dados anuais do desmatamento no país.
Já o Deter, desde 2005, com uma resolução de imagens um pouco inferior às utilizadas pelo Prodes, detecta destruição da floresta praticamente em tempo real e, dessa forma, fornece informações para autoridades competentes, como o Ibama.
Tanto o Deter quanto o Prodes oferecem algo único no mundo em questão de monitoramento de florestas, segundo especialistas: transparência e possibilidade de acompanhamento da situação ambiental do país pela sociedade civil.
Os dados do Deter são atualizados semanalmente para o público em geral e estão disponíveis na internet, além de serem enviados diariamente para o Ibama. Os resultados do Prodes são divulgados anualmente, no segundo semestre.
É exatamente essa transparência que está em jogo no momento, segundo especialistas ouvidos pela Folha.
“Quando você não quer ser cobrado, a transparência é o inimigo. Quando você não quer um ambiente democrático e a defesa das instituições, a transparência incomoda. E a transparência está incomodando”, afirma Gilberto Câmara, ex-diretor do Inpe e diretor do secretariado do GEO (Grupo de Observações da Terra).
Desde 2019, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) tem reclamado dos dados de desmatamento e queimadas noticiados dentro e fora do Brasil. A reclamação costuma vir acompanhada de dados falsos.
Mais uma vez, nesta terça (22), em discurso na abertura na Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas, Bolsonaro afirmou ser vítima de uma campanha de desinformação sobre ações ambientais.
A seguir, como de costume, minimizou os incêndios que ocorrem na Amazônia, atribuindo-os a indígenas, o que é uma afirmação falsa. Também minimizou o fogo no Pantanal, que enfrenta uma das piores situações de queimadas já documentadas.
Os dados de aumento de desmatamento divulgados periodicamente acabaram, em última instância, levando à exoneração de Ricardo Galvão, ex-diretor do Inpe, em agosto de 2019. Naquele momento, Bolsonaro afirmava que queria ver os dados antes de serem publicados.
Cerca de um ano depois, confrontado com dados continuamente negativos em relação à destruição da Amazônia, o general Hamilton Mourão, vice-presidente e chefe do Conselho da Amazônia, fez declarações na mesma linha. Afirmou que alguém do Inpe estaria tentando fazer oposição ao governo Bolsonaro.
“É alguém lá de dentro que faz oposição ao governo. Eu estou deixando muito claro isso aqui. Aí, quando o dado é negativo, o cara vai lá e divulga. Quando é positivo, não divulga”, disse Mourão. Após essa fala inicial, declarou não saber que os dados eram públicos.
A iniciativa de monitoramento mais próxima da realidade de precisão e transparência oferecida pelo Inpe é a plataforma americana Global Forest Watch, projeto da Universidade de Maryland (EUA) em parceria com o World Resources Institute.
De forma semelhante ao Inpe, a plataforma, a partir de imagens de satélite Landsat (que também são usadas pelo instituto brasileiro), permite que se observem as perdas de vegetação em diferentes florestas do mundo.
Em um dos artigos da plataforma, destaca-se o monitoramento do Inpe como base para o trabalho. Os autores afirmam que as informações ali observadas se assemelham aos dados do Prodes, “o mais longo banco de dados de registro oficial de desmatamento de uma nação”.
Mas, segundo especialistas ouvidos pela Folha, sistemas globais, e não nacionais, de monitoramento de desmate podem não ser tão específicos para as particularidades dos países.
Gilberto Câmara, por exemplo, diz que a construção do algoritmo que detecta desmate nos biomas brasileiros acaba sendo acrescido por experiências em campo de pesquisadores do instituto.
“O Brasil é o exemplo. Isso é um valor, mostra que não tem o que esconder, que está mostrando tudo. E estamos jogando isso fora, por uma política suicida”, afirma Câmara.
Ele lista outras nações com florestas tropicais e sem sistemas de monitoramento ou sem transparência.
Entre elas estão Indonésia, Vietnã e países que estão investindo no assunto, mas ainda, segundo Câmara, sem a qualidade técnica e de pessoal existente hoje no Brasil.
Seria o caso do Peru, da Colômbia e da Costa Rica —que, em documentos internacionais recentes sobre emissões de gases-estufa, discutia a implantação do monitoramento.
“O que você tem em outros países tropicais é a falta capacidade local de monitoramento”, afirma Raoni Rajão, pesquisador da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais).
Além disso, segundo Rajão, há falta de confiança em determinados dados disponibilizados por outros países com cobertura de floresta tropical.
Ele também lembra da Indonésia, que, em relatórios sobre emissões ligadas a desmatamento, inicialmente divulgou determinados dados e, após uma revisão, taxas bem inferiores —informações que não coincidem com os dados provenientes da Global Forest Watch e são, em geral, inferiores aos da plataforma.
Monitoramentos não específicos para florestas tropicais são realizados nos EUA e na Europa, que periodicamente apontam os usos da terra feitos pelas nações.
Segundo Câmara, contudo, os casos europeu e americano não servem de paralelo. As florestas nessas nessas regiões são muito menos biodiversas que as tropicais e, consequentemente por serem menores reservas de biomassa, são mais destinadas a projetos de manejo florestal, como para a indústria de papel e celulose.
Raoni Rajão resume: Europa, Estados Unidos e China estão aumentando a área florestal. “O Brasil é o país mais rico do mundo a ter desmatamento.”
BRASÍLIA Ricardo Galvão, exdiretor do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), disse nesta terça-feira (22) que o vice-presidente Hamilton Mourão “embaralha” ações militares e civis ao propor uma agência para centralizar o sistema de monitoramento da Amazônia.
Galvão também criticou o ministro Marcos Pontes (Ciência, Tecnologia e Inovação) por não ter defendido o Inpe das críticas recentes que partiram do vice-presidente e de outros membros do governo Jair Bolsonaro.
O ex-diretor foi exonerado do cargo em 2019, após embate com Bolsonaro, que questionou os dados mostrando o aumento do desmatamento na Amazônia.
As declarações foram dadas no segundo dia de audiência organizada pelo STF (Supremo Tribunal Federal), sob coordenação do ministro Luís Roberto Barroso, para discutir o Fundo Nacional sobre Mudança do Clima, além de outras questões ambientais. O evento se dá no âmbito da ADPF (arguição de descumprimento de preceito fundamental) 708, ingressada por partidos de esquerda.
No primeiro dia, participaram o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), ministros, como Augusto Heleno (Gabinete de Segurança Institucional), Marcos Pontes (Ciência, Tecnologia e Inovação), Ricardo Salles (Meio Ambiente) e Tereza Cristina (Agricultura), além de diretores de órgãos ambientais, de organismos multilaterais e representantes da sociedade civil.
O vice-presidente vem defendendo publicamente a criação de uma agência que concentre os sistemas de monitoramento por satélite. Mourão cita como exemplo o órgão norte-americano NRO (Escritório Nacional de Reconhecimento, na sigla em inglês), sob controle militar.
“Ao propor que a nova agência seguiria o modelo da agência nacional americana, NRO, o governo está claramente indicando a intuição de controlar as atividades de observação da terra sob a ótica das aplicações militares”, afirmou Galvão, durante a audiência.
O ex-diretor do Inpe ressaltou, no entanto, que a legislação americana prevê que o NRO e outras agências com fins militares sejam proibidas de atuar dentro do território americano. O monitoramento ambiental é feito por institutos civis.
“Portanto, em sua proposta, o vice-presidente está transmitindo uma ideia confusa do que seja monitoramento da Amazônia, embaralhando ações militares com civis”, afirmou.
Galvão também afirmou que a centralização do sistema de monitoramento em um órgão dentro da hierarquia militar iria afetar a credibilidade internacional dos dados. Além disso, argumenta, haveria dificuldade para que agentes públicos e privados tivessem acesso aos dados para análises.
O ex-diretor também criticou a compra de satélites pelo Ministério da Defesa e pelo Ministério da Justiça. Em relação à aquisição pela Defesa de um satélite com tecnologia de radar, chamado Lessônia 1, Galvão afirmou que havia planos para o desenvolvimento do equipamento no Brasil, mas o atual governo preferiu adquirir no exterior, sem haver desenvolvimento de tecnologia.
O ex-diretor do Inpe também criticou o ministro Marcos Pontes por não ter defendido o órgão de ataques contra a credibilidade dos dados. Recentemente, o vice-presidente Mourão afirmou algum servidor dentro do Inpe divulgaria dados negativos para prejudicar o governo.
“Infelizmente, em sua manifestação o ministro Marcos Pontes, apesar de corretamente mencionar que os dados do instituto são auditados e transparentes, evitou contestar as críticas de forma mais veemente apresentando um cenário rosado para o instituto”, disse.
Galvão também ressaltou o trabalho de seu antigo órgão no combate aos crimes ambientais e criticou os ataques recentes ao órgão e também aos órgãos ambientais.
“Os resultados produzidos até recentemente no monitoramento e controle do desmatamento em vários biomas brasileiros se deve ao trabalho árduo e dedicado de várias instituições nacionais, em particular Ibama, ICMBio e Inpe. Por isso, é com grande tristeza que vemos a forma como essas instituições são tratadas no atual governo.”
As críticas à política ambiental do governo Bolsonaro também teve a adesão de produtores rurais. O engenheiro Pedro de Camargo Neto, ex-presidente da SRB (Sociedade Rural Brasileira) criticou a série de ações judiciais que contribuíram para o enfraquecimento do Código Florestal.
Camargo Neto pediu com urgência uma interpretação única do Supremo.
“Quem perde com esse ativismo é a sociedade e, junto com ela, o meio ambiente.
Essas ações não são diretamente responsáveis pela crise conjuntural atual, mas certamente têm reflexos nesta complexa questão”, disse.
O engenheiro pediu atuação do poder público para coibir falhas que levam a crimes ambientais. Camargo Neto afirmou que existe um “vazio” que tem sido ocupado por atividades criminosas, como a grilagem, o garimpo ilegal, entre outros assuntos. Essas atividades, argumenta, acaba atingindo os produtores rurais, que ficam com suas imagens prejudicadas.
A ex-ministra do Meio Ambiente Izabella Teixeira relembrou que o Brasil havia atingido um grau de credibilidade devido à proteção do meio ambiente, mas que pouco está se mantendo. Ela afirma que o programa Floresta Mais, lançado pelo ministro Ricardo Salles, é feito com recursos oriundos da redução das emissões em anos passados, antes do governo Bolsonaro, situação que dificilmente será mantida.
Teixeira afirmou ainda que é urgente destravar o Fundo do Clima e afirmou que a situação atual do meio ambiente no Brasil é um novo “7 a 1”.
“Se vamos andar com vontade política e com diálogo e para sairmos dessa situação impensável em que o Brasil se encontra hoje, é importante que a vontade política seja verdadeira. Isso não pode ser um exercício de bravatas”, disse.
“É preciso conter esse retrocesso, nós temos que entender como avançar com o Fundo Clima. Está aí uma agenda de um novo 7×1 do Brasil. O Brasil está perdendo essa expressão de soft power e da diplomacia climática.”