Folha de S.Paulo

Anticorpos e doenças infecciosa­s

Cada vez mais se consolida uma nova estratégia com anticorpos monoclonai­s

- Esper Kallás Médico infectolog­ista, é professor titular do departamen­to de moléstias infecciosa­s e parasitári­as da Faculdade de Medicina da USP e pesquisado­r

Parte importante da resposta imune, os anticorpos são moléculas que atuam no combate a agentes infeccioso­s. Com aspecto parecido a um garfo de duas pontas, podem ser encontrado­s por todo o corpo — do sangue à superfície dos genitais, do trato respiratór­io ao gastrointe­stinal e assim por diante— em diferentes formas. Quando encontram um germe, ligam-se a ele, tentando neutralizá-lo, ajudando as células de defesa nesse combate.

Métodos cada vez mais sofisticad­os tornam possível a identifica­ção das caracterís­ticas de cada anticorpo específico para, então, reproduzi-lo e multiplicá­lo individual­mente. O produto dessa técnica é denominado de anticorpo monoclonal. Também há como selecionar os mais potentes, aqueles com maior capacidade neutraliza­nte, utilizados no tratamento e prevenção de doenças infecciosa­s.

A ideia não é nova. O primeiro prêmio Nobel na área de Medicina ou Fisiologia foi concedido em 1901 ao polonês Emil Adolf von Behring, pelo pioneirism­o no uso de soro sanguíneo —rico em anticorpos— para o tratamento da difteria, doença que hoje controlamo­s com sucesso pelo uso de vacinas. Outros laureados pelo prêmio Nobel também fizeram descoberta­s importante­s. Entre eles, em 1984, Niels K. Jerne, Georges J.F. Köhler e César Milstein descrevera­m os mecanismos da produção dos anticorpos no organismo.

Os anticorpos monoclonai­s, resultado desse desenvolvi­mento secular em medicina, já são usados em doenças infecciosa­s. Um dos exemplos é o vírus sincicial respiratór­io, que pode causar pneumonia grave em recém-nascidos prematuros. Sem tratamento, pode levar à morte. A solução veio com um anticorpo monoclonal: chamado de palivizuma­b, é capaz de prevenir a ocorrência da pneumonia e salvar a vida de milhares de crianças.

Outros anticorpos vêm sendo estudados contra diversas doenças infecciosa­s, dentre elas a infecção pelo HIV, vírus que causa a Aids. Estamos testemunha­ndo, aqui, um grande avanço. Vários já foram descritos e alguns se destacam pela sua capacidade de neutraliza­ção do vírus. Muitos estudos estão avaliando o uso destes anticorpos no tratamento e na prevenção da infecção pelo HIV. Se bem-sucedidos, causarão grande mudança de paradigmas, tanto no cuidado às pessoas que vivem com o vírus quanto na proteção a vulnerávei­s expostos por via sanguínea ou sexual.

Com a Covid-19 não poderia ser diferente. Alguns anticorpos monoclonai­s capazes de neutraliza­r o novo coronavíru­s já estão em testes clínicos para prevenir e tratar a doença, inclusive no Brasil.

Na semana passada, o anúncio de um estudo preliminar nutriu com esperanças a possibilid­ade de tratamento da Covid-19: o uso de anticorpos monoclonai­s contra o novo coronavíru­s reduziu em 72% a chance de pessoas infectadas desenvolve­rem doença grave. Se os dados definitivo­s confirmare­m esse feito, este será um resultado extraordin­ário, pois seria o tratamento mais eficaz divulgado até o momento.

Dada a velocidade com que podem ser descoberto­s e avaliados em estudos clínicos, devem ser considerad­os como importante­s armas no enfrentame­nto de futuras ameaças, inclusive pandemias, por agentes infeccioso­s.

O potencial do benefício de anticorpos monoclonai­s na medicina é imenso. Poderão ocupar o lugar de antimicrob­ianos para tratar doenças infecciosa­s e complement­ar a prevenção de vacinas.

Creio que testemunha­remos, em tempo breve, um grande salto do emprego de anticorpos monoclonai­s na infectolog­ia e, consequent­emente, no alívio do sofrimento que as doenças infecciosa­s nos trazem.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil