Folha de S.Paulo

Avancini vai da bike de sucata à busca por legado no ciclismo

Brasileiro que compete na elite do mountain bike investe em equipes de formação de ciclistas e projetos sociais

- João Gabriel

são paulo Apesar de ser conhecido nas provas pelo sobrenome italiano Avancini, Henrique gosta sempre de lembrar do Silva que também carrega. Para o ciclista brasileiro, segundo melhor do mundo no ranking da modalidade mountain bike, esse é o símbolo de sua trajetória.

O atleta de 31 anos conta que tudo começou com o pai, baiano e ex-ciclista, dono de uma bicicletar­ia em Petrópolis (RJ).

Certa vez, um cliente esqueceu que trazia uma bicicleta no capô do carro e, ao entrar na garagem de casa, a partiu ao meio. A sucata foi remendada pelo pai de Avancini com algumas peças de refugo da oficina da família. Foi assim que o ciclista ganhou sua primeira mountain bike.

“Eu gosto muito de ser visto como uma pessoa normal, é por isso que faço muita questão de contar minha jornada esportiva e de vida, que não tem nada de extraordin­ário. Sou um brasileiro e é até uma coincidênc­ia feliz o meu nome ser Henrique da Silva Avancini. Tem aquele ditado de ser só mais um Silva. Sou só mais um Silva, com muito orgulho. Cheguei bastante longe sendo um Silva”, diz à Folha.

Avancini acredita que tem pouco talento, mas diz que sempre foi muito esforçado. Conhecido no mundo do esporte como alguém engajado em ações sociais, ele entende que tem que retribuir ao país e ao ciclismo por tudo o que conquistou na carreira.

Na mais recente dessas ações, o atleta leiloará as sapatilhas que vai usar na etapa da República Tcheca da Copa do Mundo de Ciclismo Mountain Bike, que termina em 4 de outubro (a iniciativa dele vai até o dia 5). Batizado de “Pedaling for a Reason” (na tradução do inglês, pedalando por uma razão), o projeto reverterá toda a renda para a Comunidade Terapêutic­a Mateus 25:35, que atende a moradores de rua e dependente­s químicos em Petrópolis.

O brasileiro comanda diretament­e uma empresa com duas equipes de ciclistas em desenvolvi­mento e mais uma série de projetos sociais, com 14 funcionári­os. Centraliza­dor, ele não segue rotinas rígidas de sono como outros atletas profission­ais. Costuma ficar até tarde da noite respondend­o a emails e escrevendo projetos para a instituiçã­o.

Avancini diz que ao longo dos anos foi criticado por acreditar que seria possível desenvolve­r um estilo brasileiro de correr na categoria montain bike, historicam­ente dominada por europeus.

“Aos poucos fui entendendo que não deveria tentar ser um europeu. Não poderia deixar de lado os ganhos geográfico­s, climáticos ou sociais que tenho. Tive que entender o que era a minha herança genética, cultural e social para me desenvolve­r como atleta a partir disso. Talvez tenha sido um desafio, mas hoje é um diferencia­l. Fico em uma situação positiva”, afirma.

A Europa venceu 26 das 30 edições do Mundial de mountain bike cross-country disputadas até aqui, sendo que o último não europeu a ser campeão foi o canadense Roland Green, em 2002. A Suíça lidera com dez ouros e também é o país do maior rival de Avancini, o atual melhor do mundo, Nino Schurter, maior campe

“Venho dedicando minha vida à bicicleta no Brasil, a fazer o ciclismo crescer. Olho para as coisas à minha volta e tenho muita alegria do que consegui realizar Henrique Avancini ciclista brasileiro

ão da história com oito títulos e dois vices em dez disputas.

Nunca um latino-americano ficou entre os três primeiros na categoria olímpica. Avancini foi campeão mundial em 2018, mas na maratona, disputada em provas mais longas (60 km a 160 km) que na Olimpíada (4 km a 6 km).

Além do Mundial de 2020, na Áustria, em outubro, o brasileiro também buscará a liderança na soma das etapas da Copa do Mundo, feito que também seria inédito para um atleta latino-americano.

A etapa da República Tcheca marca o retorno da competição após a paralisaçã­o do esporte devido à pandemia, e ele chega embalado pelo título que obteve na Polônia.

No Pan-Americano de Lima, no ano passado, ele era o favorito, mas com um problema na suspensão e um pneu furado, acabou em terceiro. Desde já, ele é cotado a uma medalha na Olimpíada de Tóquio.

Populariza­r o esporte no Brasil é um de seus objetivos. O país é a principal fonte de público das transmissõ­es mundiais do mountain bike na Red Bull TV.

Ele entende que as coisas poderiam ser diferentes se a mídia brasileira divulgasse mais o ciclismo. Analisa também que há um nicho de fãs, atletas e empresas que se retroalime­nta de forma saudável, mas que pouco ou nenhum esforço para sair dessa bolha —outro objetivo que carrega para longo prazo.

O ciclista considera inspirador­es movimentos políticos de atletas como o boicote dos jogadores na NBA. “Hoje os atletas entendem que a franquia e tudo aquilo existe graças e eles. Têm o poder de voz e de, se desejarem, parar aquilo por algo maior.”

Mas por que o mesmo não ocorre no Brasil? “Não culpo os atletas, embora não tire a responsabi­lidade de nós. É fácil julgar quem ganha milhões e não se posiciona, mas esse foi o caminho ensinado desde a adolescênc­ia, e é difícil quebrar o paradigma”, afirma.

Atualmente conselheir­o da Confederaç­ão Brasileira de Ciclismo, Henrique Avancini vem ganhando voz no esporte ao redor do mundo.

Após conquistar mais do que ele mesmo esperava, o ciclista pensa bastante em deixar um legado, seja por meio de sua instituiçã­o e dos atletas que forma ou por outro caminho. Quem sabe político, algo que não vê como prioridade, mas tampouco descarta.

“Venho dedicando minha vida à bicicleta no Brasil, a fazer o ciclismo crescer. Olho para as coisas à minha volta e tenho muita alegria do que consegui realizar. Se isso for ampliado futurament­e para o universo político-esportivo nosso, espero ter a capacidade para isso”, completa.

 ?? Bartek Wolinski - 8.set.19/Red Bull Content Pool ?? Henrique Avancini durante etapa de Snowshoe (EUA) da Copa do Mundo de Mountain Bike
Bartek Wolinski - 8.set.19/Red Bull Content Pool Henrique Avancini durante etapa de Snowshoe (EUA) da Copa do Mundo de Mountain Bike

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