Folha de S.Paulo

Sumiço do arroz é o da própria brasilidad­e, diz socióloga

Chefs e pesquisado­res discutem a viabilidad­e de substituir um cereal tão enraizado nos hábitos nacionais

- Marília Miragaia

são paulo “Acabaram as brigas sobre uva-passa no arroz do Natal: neste ano não tem arroz.” Esse foi um dos memes, entre os bem humorados e os mais raivosos, que circularam na última semana sobre o aumento no preço do produto no Brasil, que acumulou alta de 19% no ano, de acordo com o IBGE.

O surgimento das piadas na internet é simbólico: o ingredient­e, presente em mesas de todas as regiões do país (com menor intensidad­e no norte), é um elemento fundamenta­l da cozinha brasileira. Por isso, sua ausência ou seu encarecime­nto são capazes de provocar reações intensas.

Em momentos de restrição econômica, como o atual, a estratégia usual do brasileiro é recorrer a componente­s mais acessíveis para acompanhar a mistura de arroz com feijão, diz o sociólogo Carlos Alberto Dória. Deixam o prato carnes como a de frango ou bovina, e entram itens mais baratos, como ovos, abóbora, chuchu.

Na ausência deste cereal, a base da equação fica comprometi­da. “Arroz e feijão é aquilo ao qual você agrega complement­os. Se você desestrutu­ra essa composição, desestrutu­ra a refeição. Mesmo que adicione alguma outra coisa, vai ficar a sensação de falta”, diz o pesquisado­r.

O arroz é o principal representa­nte do grupo dos cereais no Brasil, proporcion­ando uma refeição equilibrad­a em dupla com o feijão, segundo o Guia Alimentar para a População Brasileira.

Mesmo elogiado dentro e fora do Brasil, o documento acaba de sofrer pedido de revisão e foi desqualifi­cado por nota enviada pelo Mapa (Ministério da Agricultur­a, Pecuária e Abastecime­nto) ao Ministério da Saúde —o órgão, porém, afirma não ter recebido a solicitaçã­o.

Como está enraizado aos hábitos, é difícil para as pessoas, principalm­ente em centros urbanos, conseguire­m visualizar suas refeições e buscarem substituto­s a ele, afirma Letícia Massula, chef e pesquisado­ra de cozinha brasileira.

“O arroz já está muito incorporad­o ao nosso repertório. Sem ele, o que vai ser colocado no lugar? Macarrão ou pão industrial­izado, que são mais pobres do ponto de vista nutriciona­l. É uma perda grande”, diz Massula.

A falta do cereal também pode assumir outros significad­os, diz Elaine de Azevedo, socióloga da alimentaçã­o. “O sumiço do arroz é o sumiço da própria brasilidad­e e da soberania, chegando a um alimento que afeta todas as classes. É um simbolismo forte entender que o arroz está fora do país hoje”, diz ela, que apresenta o podcast Panela de Impressão.

O grão é um dos produtos agrícolas que bateram preços recordes devido, entre outros fatores, ao grande volume de exportaçõe­s, impulsiona­do pela desvaloriz­ação do real.

Ao lado do trigo, ele é um dos cereais mais cultivados do mundo. Mas, ao contrário do feijão, que esteve presente na dieta desde o início da vida colonial no Brasil, o arroz teve sua difusão tardia, depois do século 18, com a chegada da corte portuguesa, explica o livro “Formação da Culinária Brasileira”(ed. Três Estrelas; 280 págs.), de Carlos Alberto Dória.

Investigad­or da cozinha brasileira, Luís da Câmara Cascudo (1898-1986) diz em “História da Alimentaçã­o no Brasil” (ed. Global, 972 págs.; R$ 91) que o brasileiro come arroz indiferent­emente e que esse cereal não pode competir com a farinha de mandioca ou o milho —raiz e grão já domesticad­os no continente sul-americano entre dez mil e sete mil anos atrás.

Aliás, se estamos falando de cereais, “é simbólico a gente ter dificuldad­e de olhar para o milho e enxergá-lo como substituto do arroz. A gente perdeu o milho há muito tempo e isso também é emblemátic­o”, diz Elaine de Azevedo, socióloga.

Uma explicação para o arroz ter perdido sua neutralida­de foi sua associação ao feijão. Mas há quem discorde dessa condição imparcial. Para a chef Mara Salles, do Tordesilha­s, em São Paulo, um erro que não se pode admitir é diminuir a importânci­a do preparo do arroz.

“Por que o arroz não pode ser feito de forma excepciona­l, para que fique soltinho e saboroso? Em geral, as pessoas menospreza­m o preparo, como se fosse um elemento de encher a barriga. Desde sempre, aprendi que o arroz e feijão têm status de prato principal. E se a base é o arroz, ela precisa ser bem feita”, diz.

Tanto é que Mara criou uma técnica própria, que ensinou em aulas e no livro “400g - Técnicas de Cozinha” (ed. Companhia Editora Nacional; 576 págs.). O método começa com lavar o grão e deixá-lo bem sequinho, exclui o uso da cebola e exige atenção para regular a intensidad­e do fogo durante o preparo.

Foi depois de uma das demonstraç­ões sobre o preparo, em São Miguel Paulista, extremo da zona leste de São Paulo, que Mara disse ter ouvido uma das frases que mais marcaram sua carreira: “o arroz ficou soltinho lá em casa. E, agora, eu nunca mais joguei fora”, disse uma aluna.

Por que o arroz não pode ser feito de forma excepciona­l, para que fique soltinho e saboroso? Em geral, as pessoas menospreza­m o preparo, como se fosse um elemento de encher a barriga

Mara Salles chef do restaurant­e Tordesilha­s

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Adobe Stock Grãos de arroz cru jogados ao alto

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