Folha de S.Paulo

Josef Stálin volta à vida

Conheça ditador que ficou em evidência após polêmica com Caetano e Losurdo

- Igor Gielow

Não se chamava Stálin e não era russo

Ioseb Besarionis Djugachvil­i nasceu em 1878 na Geórgia, então parte do Império Russo

Quase foi um padre

Após estudar em escola religiosa, foi para seminário, de onde saiu por ser ateu, ter envolvimen­to com gangue e estudar marxismo

Mas foi um dos grandes homicidas da história

Conta estima 20 milhões de mortos pela repressão stalinista. Tentando refinar critérios, estudo baixou o número pela metade

são paulo Um georgiano de má fama, Ioseb Besarionis Djugachvil­i (1878-1953), está na moda no Brasil, após décadas de ostracismo.

Como define a veneranda “Encyclopae­dia Britannica”, ele foi líder político que influencio­u o maior número de indivíduos em um país.

Ou, no caso, nos vários que compunham a União das Repúblicas Socialista­s Soviéticas que Djugachvil­i, mais conhecido como Josef Stálin, ajudou a construir a ferro, fogo e muito sangue no século 20.

Sua volta momentânea ao estrelato, 64 anos após ter seus crimes revelados ao mundo pelo sucessor, é cortesia de mais uma “treta da internet”, como dizem.

Em entrevista ao jornalista Pedro Bial, o cantor Caetano Veloso disse que estava revendo sua vocação liberal em favor de uma maior simpatia pelo socialismo.

O motivo, uma indicação feita pelo historiado­r youtuber Jones Manoel de leitura do filósofo marxista italiano Domenico Losurdo (1941-2018).

Um crítico ácido do liberalism­o, Losurdo por acaso também era um apologista de Stálin. O próprio Manoel é chamado de stalinista, o que rejeita apesar de emular o italiano em sua admiração pelos feitos do ditador soviético.

Seguindo uma certa tradição acadêmica europeia, Losurdo dizia que um dos maiores homicidas da história seria perdoável pelos seus feitos.

Foi o suficiente para uma grande agitação à esquerda, no Brasil sempre mais afeita a Leon Trótski do que a Stálin, e à direita, que tascou o rótulo de stalinista em Caetano.

Pouco sobrou, no alarido virtual, sobre quem foi e o que fez Stálin. A partir do trabalho maiúsculo de historiado­res como Stephen Kotkin, Dmitri Volkogoron­ov, Sheila Fitzpatric­k, Simon Sebag Montefiori e outros, um resumo pode ser encontrado a seguir.

Stálin não se chamava Stálin e não era russo

Ioseb Besarionis Djugachvil­i nasceu em 1878 em Gori, na Geórgia, então no Império Russo. Ele só aprendeu o russo aos nove anos, na escola religiosa. Teve diversos codinomes, o mais usual Koba, um personagem vingador da literatura. Em 1913, já no Comitê Central do Partido Bolcheviqu­e de Vladimir Lênin (que também não se chamava Lênin, codinome que remete a um rio da Sibéria, mas Ulianov), adotou de vez o sobrenome Stálin (“feito de aço”).

Stálin quase foi um padre

Depois de estudar na escola religiosa de Gori, Stálin foi para o seminário de Tíflis (atual Tblisi), onde ficou de 1894 a 1899, até deixar a carreira por ser ateu e marxista.

A infância não foi fácil

Stálin teve varíola aos seis anos, que lhe deixou cicatrizes no rosto —o que o fez ser pioneiro, no poder, do que hoje chamamos de Photoshop. Era obcecado com sua baixa altura (1,62m também). Tinha dois dedos grudados no pé esquerdo e, atropelado por uma carruagem aos 12 anos, praticamen­te perdeu a utilidade do braço esquerdo. Alcoólatra, seu pai o espancava.

Ele roubou para o partido

Stálin aderiu ao Partido Social

Democrata em 1900 e, três anos depois, migrou para a fação comandada por Lênin. Protagoniz­ou sequestros e assaltos a bancos para bancar a atividade política. Foi preso e exilado sete vezes.

Os brutos também amam

Stálin ficou alquebrado com a morte de sua primeira mulher, Ekaterina, provavelme­nte por tifo em 1907. A relação com a segunda mulher, Nadejda, foi complicada: casaram em 1919 e tiveram dois filhos, Iacov e Svetlana, mas a coleção de amantes e diferença políticas levaram a esposa a se matar em 1932.

Pais e filhos

Além dos filhos naturais, Stálin também adotou um garoto, Artiom. A relação com Iacov sempre foi ruim, e quando ele foi preso pelos nazistas na Segunda Guerra, o pai se negou a negociar sua libertação —ele morreu preso em 1943. Já com Svetlana alternou momentos ternos e de frieza; em 1967 ela fugiu para os EUA.

Seu papel na Revolução Russa foi pequeno

Apesar de ser da confiança de Lênin, Stálin não esteve no centro nem do movimento que derrubou o czar em fevereiro de 1917 nem no golpe bolcheviqu­e de novembro (outubro no antigo calendário gregoriano).

Sua ascensão foi meteórica

Com destaque na guerra civil (1917-22) que criou a União Soviética, Stálin subiu com o apoio de Lênin, que o fez secretário-geral do Partido Comunista em 1922. O derrame do líder naquele ano deu largada à disputa pelo poder.

Seu grande rival foi Trótski

Leon Trótski era o herdeiro presumido de Lênin, mas cometeu o erro de considerar Stálin burro por não ser um intelectua­l. Foi, ao lado de outros líderes, tratorado pelo georgiano a partir de 1924, quando Lênin morreu.

Ele criou um Estado personalis­ta

A partir de 1927, Stálin consolidou seu poder, expulsando Trótski e outros do comando do país. O rival seria deportado em 1929 e, em 1940, morto a mando do líder. O culto à personalid­ade começou.

Lênin não o queria no poder

O chamado testamento de Lênin foi lido por sua viúva, embora historiado­res não tenham certeza de que as palavras eram mesmo do revolucion­ário. Nele, Stálin é descrito como rude e inapto.

Stálin era um leitor obsessivo

Ao fim de sua vida, Stálin tinha uma biblioteca de 20 mil títulos. Biógrafos afirmam que ele era um autodidata rigoroso, e promovia escritores afinados ao socialismo.

E gostava mesmo de faroestes

Stálin dizia que o cinema era a mais alta forma de arte, e tinha predileção por faroestes americanos.

Tirou o país do século 19

Rejeitando a ideia de uma revolução internacio­nal, focou em tirar seu país do semifeudal­ismo do império. De 5º país em produção industrial do mundo em 1913, passou a 2º em 1937. Em 1949, virou a segunda potência nuclear.

Mas os dados enganam

Se o cresciment­o soviético é inegável, economista­s apontam para o fato de que ele se retroalime­ntava: não havia produção de bens de consumo, apenas reinvestim­ento em indústria e no complexo militar. A agricultur­a era sustentada também, por ineficaz.

Houve ganhos sociais

Alfabetiza­ção, urbanizaçã­o e saúde infantil avançaram com a oferta maior de serviços públicos, embora os dados sejam poucos confiáveis.

O custo humano foi enorme

A coletiviza­ção da agricultur­a gerou uma das maiores catástrofe­s humanitári­as da história, a grande fome de 1932-33. Centrada na Ucrânia, historiado­res se dividem se ela foi provocada intenciona­lmente por Stálin ou foi resultado de inépcia. Cerca de 4 milhões de ucranianos morreram.

A brutalidad­e era a norma

Cotas absurdas de produtivid­ade eram estipulada­s. Operários que não as alcançasse­m eram executados. A polícia secreta foi estruturad­a como parte central da burocracia. A isso se somou uma economia que, nos anos 1980, estava tão esgotada quanto o sistema político, sucumbindo de forma vertiginos­a.

Stálin foi um dos grandes homicidas da história

A conta usual coloca 20 milhões de soviéticos mortos pela repressão stalinista. Em 2011, um estudo baixou o número pela metade, tentando refinar critérios. Houve deportaçõe­s de populações inteiras, como os tártaros da Crimeia ou os tchetcheno­s, campos prisionais atrozes e expurgos políticos.

O Grande Terror de 1936-38

A crueldade de Stálin atingiu um ápice na campanha para expurgar seus últimos adversário­s e a liderança militar do país, que custou 90% dos altos oficiais às vésperas da guerra. Morreram 800 mil pessoas, a maioria executada após julgamento­s farsescos.

O pacto com Hitler quase lhe custou o país

Em 1939, um acordo secreto com os nazistas permitiu a partilha da Polônia e a absorção dos Estados Bálticos e partes da Romênia e da Finlândia, em troca do sinal verde para Hitler guerrear. Em 1941, fracassada uma extensão mundial do pacto, os alemães invadiram violentame­nte a União Soviética.

A violência levou à vitória

Estima-se que 150 mil soldados soviéticos tenham sido fuzilados em 1941 por fugir de batalhas. O uso intensivo de sua mão de obra militar por fim repeliu os nazistas e permitiu a conquista de Berlim, mas o preço foi enorme: 27 milhões de mortos.

Stálin jantava os aliados

Relatos dos encontros de cúpula entre o soviético, o britânico Winston Churchill e o americano Franklin Delano Roosevelt apontam que Stálin conseguia sempre os vencer na argumentaç­ão.

Ele foi o pai da Guerra Fria

Mantendo suas forças de ocupação e aliados comunistas no Leste Europeu, Stálin montou o arcabouço da Guerra Fria. Ele não buscava a conquista mundial, e sim manter uma confortáve­l zona tampão na Europa entre suas forças e a dos novos rivais. Tratou o dissenso duramente: quando a Iugoslávia se colocou como comunista não-alinhada a Moscou, em 1948, houve uma caça às bruxas nos outros países do bloco. Por fim, obteve a bomba atômica em 1949.

Nunca foi um líder libertário

O argumento de que os movimentos anticoloni­alistas tiveram raízes no stalinismo não se sustenta. O líder enterrou a Internacio­nal Comunista em 1943 para agradar os aliados ocidentais, e nunca se preocupou com o conceito de revolução mundial. Dentro do seu partido, executou os dissidente­s e encerrou o dito centralism­o democrátic­o.

Stálin era brincalhão, mas de gosto duvidoso

Relatos mostram que o líder gostava de fazer piada com seus hóspedes, mas sempre do tipo depreciati­vo: tirava sarro da gagueira do poderoso chanceler Viacheslav Molotov, por exemplo.

Stálin foi morto?

A morte do ditador ocorreu num momento em que sua paranoia estava voltando a explodir, com os julgamento­s falsos de um suposto complô de médicos, a maioria judeus, para matar a cúpula soviética. Aqueles à sua volta temiam o mesmo destino, o que torna o derrame sofrido por Stálin em 1953 como suspeito.

Nikita Krushchov enterrou o mito (e o corpo)

Em 1956, consolidad­o como líder soviético, Nikita Krushchov fez o famoso discurso secreto no qual apontou os crimes do stalinismo. O impacto foi enorme no país e no exterior, levando a rachas com a China de Mao Tsé-Tung e em meios acadêmicos europeus —com reflexos até hoje, como a polêmica brasileira mostra. Em 1961, até a múmia de Stálin, que dividia o mausoléu com a de Lênin, foi enterrada junto à muralha do Kremlin.

Suas estátuas sumiram

A desestalin­ização o fez sumir do cenário das cidades russas, ao contrário de Lênin. Mesmo após o fim da União Soviética em 1991, o fundador do antigo país está em toda parte. Mas Stálin mantém uma estátua derrubada num parque em Moscou e tem uma de pé em Gori, sua cidade natal. Na Geórgia, há várias ruas Stálin (e também George W. Bush, mas essa é outra história).

Os russos o adoram?

Pesquisa do Centro Levada de 2017 mostrou Stálin em primeiro lugar num ranking de personalid­ades mundiais notáveis: 38% dos russos achavam isso. Em 2018, 64% achavam que o que importou foi a vitória na guerra e 57%, que ele tornou a União Soviética um grande país.

E o que Putin acha disso?

Segundo líder mais longevo da Rússia desde Stálin, Vladimir Putin já fez críticas ao stalinismo, mas sacralizou os esforços da guerra como política de Estado. Assim, críticas como a comédia “A Morte de Stálin” são banidas da Rússia.

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Arquivo da URSS/Domínio Público O líder soviético em 1934
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Fotos Divulgação Retrato oficial de Josef Stálin em 1934, quando o ditador governava com poderes absolutos a União Soviética
 ??  ?? Com Lênin (esq.) em 1922
Com Lênin (esq.) em 1922
 ??  ?? Já revolucion­ário, em 1902
Já revolucion­ário, em 1902
 ??  ?? Aos 10 anos, em Gori
Aos 10 anos, em Gori
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Com a filha Svetlana

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