Folha de S.Paulo

O grande debate brasileiro

Sociedades abertas supõem conflito de valores legítimos, ainda que incompatív­eis entre si

- Fernando Schüler Professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo

Tratar a todos como iguais, diante da lei, ou perseguir algum tipo de igualdade substantiv­a, via reparações, ao preço da igualdade formal. Parece claro que o país vem caminhando nesta segunda direção. A atitude da Magalu é apenas um sinal.

Quando li o livro de Arlie Hochschild Strangers in Their Own Land (estranhos em sua própria terra, sem edição em português), fiquei fascinado pela imagem que ela criou para compreende­r o conservado­rismo americano.

Hochschild é uma socióloga progressis­ta de Berkeley e fez um mergulho de alguns anos na América profunda, em uma região ultraconse­rvadora e relativame­nte pobre da Louisiana.

Imagine, diz ela, que você esperou a vida inteira pela sua grande chance. Você fez tudo certo e esperou na fila, pacienteme­nte, mas quando está muito perto da chegada, já observando as luzes do “American Dream”, você vê que há um monte de gente furando a fila.

Aí você reclama e vem alguém “bem formado, quem sabe de Harvard, e diz que você é um caipira racista, homofóbico, sexista, ignorante e fanático pela Bíblia”. A imagem tenta descrever os sentimento­s do “redneck” americano, interioran­o, ridiculari­zado pela gente cabeça das universida­des, dona da retórica e da virtude moral. Os fura-filas são aqueles que recebem agora os benefícios da ação afirmativa.

O interessan­te é que a imagem de uma outra fila serviria para descrever o mundo americano de não muito tempo atrás. Com um detalhe: os barrados, e por vezes logo no início, eram exatamente os que hoje ganham sua chance com as políticas de ação afirmativa.

Nada muito diferente do Brasil. Ainda me lembro, na infância, de uma época em que meus amigos negros, e eram muitos, por alguma razão que não entendia bem, não podiam frequentar a piscina do clube. Não havia nenhuma placa dizendo que não podia. Apenas não acontecia.

Os dados da exclusão brasileira são bem conhecidos. Dados do mercado de trabalho, dos indicadore­s de escolarida­de, da pirâmide de renda. Dá pra escolher. Mas o fato é que eles não dizem tudo. Há uma história silenciosa de vetos e humilhaçõe­s na memória ainda muito fresca de quem pertence à minha geração.

Quando vejo a polêmica em torno do programa de trainee feito pela Magalu, não resisto à tentação de ver o episódio sob o prisma dessa memória. Alguns dirão que tudo não passou de uma jogada de marketing da empresa e de “sinalizaçã­o de virtude”. Pode ser.

O fato é que há um elemento de reparação aí. Robert Nozick, o antagonist­a libertaria­no de Rawls, na Harvard dos anos 1970, definiu isso de uma forma incômoda. Você respeita os direitos individuai­s? Só agora ou vale um pouco para trás? Até quando você está disposto a recuar no tempo e reparar direitos que foram surrupiado­s? Direitos são “históricos”, não é mesmo? Ou só apareceram no ano passado?

Reparação sempre foi um tema difícil, pois ninguém sabe, no fundo, como aplicar o conceito. Muita gente dirá que criar novas exclusões não é uma boa forma de fazer isso. Elas irão produzir reações e ressentime­ntos. Por vezes silencioso­s, por vezes nem tanto. É disso que trata o livro de Hochschild.

Alguns dirão, em favor da atitude da Magalu, que isso tudo é conversa e que qualquer coisa que possa ser feita para pagar a conta da grande exclusão brasileira será pouco. Outros ainda dirão que uma boa sociedade liberal dá a qualquer um o direito de contratar ou excluir quem quiser, no mundo privado, e que apenas a regra pública não poderia impor essas coisas.

O fato é que não há a mínima possibilid­ade de consenso aí. Isso toca no nervo do que Isaiah Berlin chamou de pluralismo objetivo, marca por excelência de nossas sociedades abertas. Sociedades marcadas por um conflito permanente entre ordens de valores simultanea­mente verdadeira­s, ainda que incompatív­eis entre si.

É disso que trata este episódio: o conflito entre tratar a todos como iguais, diante da lei, ou perseguir algum tipo de igualdade substantiv­a, via reparações, ao preço da igualdade formal. Parece claro que o país vem caminhando nesta segunda direção. A atitude da Magalu é apenas um sinal. Não tenho dúvidas de que outros virão.

No mais, estamos muito longe de vislumbrar no horizonte uma sociedade capaz de assegurar uma base de oportunida­des iguais para todos. Como fazer isso, no fundo, é o grande debate brasileiro.

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