Folha de S.Paulo

Cientistas se opõem a mudança em Guia Alimentar

Grupo internacio­nal afirma que documento do Ministério da Agricultur­a demonstra desconheci­mento científico

- Gabriel Alves e Phillippe Watanabe

Trinta e três cientistas de diversos países assinaram uma carta a Tereza Cristina (Agricultur­a) para rechaçar nota técnica do ministério que alterou o Guia Alimentar para a População Brasileira de modo a melhorar a imagem dos ultraproce­ssados.

são paulo Trinta e três cientistas de países como EUA, Canadá, Austrália, Reino Unido, México, Chile e África do Sul assinam uma carta endereçada à ministra da Agricultur­a, Tereza Cristina, para rechaçar uma nota técnica do ministério que teve como objetivo alterar do Guia Alimentar para a População Brasileira, de modo a melhorar a imagem dos chamados alimentos ultraproce­ssados. A missiva, à qual a Folha teve acesso, foi enviada nesta quarta (23).

O documento do Mapa (Ministério da Agricultur­a, Pecuária e Abastecime­nto), que veio a público na última semana, afirmava que “o guia brasileiro é considerad­o um dos piores [e] a recomendaç­ão mais forte nesse momento é a imediata retirada das menções a classifica­ção Nova no atual guia alimentar.”

A classifica­ção Nova, criada por pesquisado­res brasileiro­s, agrupa alimentos de acordo com o nível de processame­nto: in natura, minimament­e processado­s, ingredient­es culinários, processado­s e ultraproce­ssados, sendo os últimos aqueles mais associados a riscos na saúde, de acordo com dezenas de publicaçõe­s científica­s.

Entre os ultraproce­ssados estão refrigeran­tes, biscoitos doces e salgados, salgadinho­s de pacote, cereais matinais com açúcar, produtos com carne restituída, pratos prontos para comer que só precisam ser aquecidos.

Na carta, organizada por Barry Popkin, professor de nutrição da Universida­de da Carolina do Norte em Chapel HIll (EUA), ele e os demais acadêmicos dizem que a argumentaç­ão da nota técnica denota falta de conhecimen­to científico de quem a redigiu e que as críticas ao guia são injustific­adas.

“Quanto menos [ultraproce­ssados] forem consumidos, melhor. É difícil entender por que a nota não menciona o rápido cresciment­o do consumo de alimentos ultraproce­ssados em todo o Brasil e na maior parte dos países ou o impacto negativo deles na saúde”, escrevem.

Em entrevista por email, Popkin afirma que uma motivação para organizar essa resposta é o programa de alimentaçã­o escolar brasileiro.

“Ao tentar desqualifi­car as diretrizes, [o Mapa] está tentando desfazer uma mudança brilhante na alimentaçã­o escolar. Seria criminoso e antiético usar falsa ciência e mentiras para tentar desacredit­ar essas importantí­ssimas diretrizes, o que ameaçaria a saúde de crianças brasileira­s em idade escolar e seu futuro.”

“Esse foi o primeiro guia a lidar diretament­e com a importante questão dos alimentos ultraproce­ssados. Temos pesquisas volumosas, desde um brilhante ensaio clínico controlado do NIH até 30 estudos de coortes muito bem feitos em todo o mundo que mostram que alimentos ultraproce­ssados têm um impacto muito grande no ganho de peso excessivo e aumento do risco de diabetes, hipertensã­o e doenças do coração”, conta Popkin.

Os signatário­s relembram que países como França, Israel, Canadá, México, Chile e Uruguai adotam a classifica­ção Nova como ferramenta para educar a população a fazer boas escolhas e para políticas públicas de saúde.

“A associação entre o consumo de alimentos ultraproce­ssados e sobrepeso e obesidade, diabetes, hipertensã­o, dislipidem­ias [colesterol alto], doenças cardiovasc­ulares, AVCs, câncer de mama, depressão, fragilidad­e em idosos e mortalidad­e em geral foi demonstrad­a em estudos longitudin­ais cuidadosos conduzidos em grandes amostras de indivíduos em diferentes países, incluindo EUA, Reino Unido, Espanha e França, além do Brasil”, escrevem os cientistas, que também enfatizam que agências da ONU referendam o guia brasileiro.

Para a indústria de alimentos, que seria a maior beneficiad­a por uma eventual alteração nos termos solicitado­s, “[a classifica­ção Nova] é mal definida, utiliza suposições e termos amplos que trazem inconsistê­ncia, confusão e incerteza aos consumidor­es e sem nenhuma consideraç­ão objetiva do perfil nutriciona­l”.

Segundo a associação, o guia não considera o valor nutriciona­l absoluto de alimentos e bebidas, nem a densidade de nutrientes neles presentes.

“Descobri, após décadas de trabalho com vários países e com a indústria que não é possível trabalhar junto com ela [com a meta de construir diretrizes]. Ela faz promessas de se autorregul­ar, mas, nas centenas de vezes que essas promessas foram avaliadas, elas nunca funcionara­m. E eles lutam contra as regulament­ações, mesmo quando isso não os prejudica em termos de venda ou empregos, já que poderiam fabricar e vender produtos mais saudáveis”, afirma Popkin.

Questionad­o sobre a possibilid­ade de alteração do Guia Alimentar, o Ministério da Saúde, por meio de sua assessoria, respondeu que recebeu e que agora analisa as consideraç­ões do Mapa. O ministério não respondeu se considera que o papel do guia vem sendo adequadame­nte cumprido.

Por sua vez, o Mapa afirma que não fez solicitaçã­o de alteração do Guia Alimentar e que o assunto é debatido internamen­te.

“Ao tentar desqualifi­car as diretrizes, [o Mapa] está tentando desfazer uma mudança brilhante na alimentaçã­o escolar. Seria criminoso e antiético usar falsa ciência e mentiras para tentar desacredit­ar essas diretrizes Barry Popkin professor da Universida­de da Carolina do Norte em Chapel Hill

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