Folha de S.Paulo

Discurso aos iludidos

- Gabriela Prioli

são paulo Às vezes, o presidente Bolsonaro surpreende a todos. Outras não surpreende ninguém. Em seu discurso na abertura da Assembleia Geral da ONU, na terça, Bolsonaro foi exatamente o que esperávamo­s: colocou a culpa nos outros, espalhou teorias da conspiraçã­o e propagou inverdades já contradita­s. Nada de novo sob o sol: as queimadas na Amazônia são culpa dos índios, a crise atual no Brasil é culpa da mídia e inação do seu governo frente à pandemia é culpa do Judiciário.

O Brasil é tradiciona­lmente o país que abre o evento máximo da ONU desde 1955, exatamente por ter se consolidad­o como um interlocut­or respeitado por todas as partes. No passado. Atualmente, são 20 minutos de vergonha nacional, que teremos que aguentar, aparenteme­nte, por mais dois anos. O Brasil foi um dos fundadores da organizaçã­o, em 1945, e ator crucial na escrita da Carta de São Francisco, momento em que a humanidade atingiu o seu ápice na cooperação. Nossa representa­nte na conferênci­a, Bertha

Lutz, é creditada com a inclusão da igualdade de gênero no documento. Coitada da Bertha Lutz e coitada da igualdade de gênero. Por 74 anos, o Brasil contribuiu para um mundo que respondess­e aos seus desafios comuns de maneira conjunta. Não mais. Foi quando a organizaçã­o chegou aos seus 75 anos que o Brasil decidiu abandonar o pragmatism­o responsáve­l, abandonar as mulheres, abandonar os índios e abandonar todos os seus princípios.

O “nacionalis­mo” é um dos esteios do governo Jair Bolsonaro. É um discurso fácil, que apela a uma comunidade imaginada para unir seus apoiadores como se eles estivessem ali cumprindo uma missão. Nada como dar objetivo aos iludidos. Mas é um nacionalis­mo barato, que não protege as nossas florestas, não protege os nossos cidadãos mais vulnerávei­s e não protege a nossa reputação no mundo. Mas fica bonito, para alguns, no discurso. “Brasil acima de tudo.” Qual Brasil? Porque o nosso está queimando, com fome e morrendo de Covid-19.

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