Folha de S.Paulo

O aprendizad­o com a pandemia e a ciência no pós-Covid-19

É preciso formar uma rede nacional integrada de enfrentame­nto a doenças

- Marcelo A. Mori e Marimelia Porcionatt­o Professor do Instituto de Biologia da Unicamp e secretário regional da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) Professora da Escola Paulista de Medicina e coordenado­ra de Pesquisa da Unifesp, é secre

A Covid-19 trouxe mazelas incalculáv­eis, muitas irreparáve­is. Como é comum em crises humanitári­as, revelou o que há de melhor e pior nas pessoas. Embora o sofrimento com a pandemia não possa ser ignorado, é preciso entender o que de bom podemos tirar da crise. Nesse aspecto, há de se destacar o papel da ciência e a organizaçã­o de cientistas no enfrentame­nto da doença.

Enquanto o mundo observa a devastação causada pela Covid-19, cientistas se organizam, montam forças-tarefas, mobilizam recursos, desenvolve­m protocolos, geram conhecimen­to, compartilh­am dados e servem de bastiões de esperança diante do caos anunciado.

Caos que, de acordo com princípios físicos básicos, é tendência espontânea no Universo, somente antagoniza­do pela injeção constante de energia na forma de trabalho. Sabendo disso, a academia se organizou.

Um exemplo é a Rede Vírus, criada pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações para integrar iniciativa­s de combate a viroses. A mobilizaçã­o no enfrentame­nto da Covid-19 vem demandando trabalho e organizaçã­o, catalisada pela massa crítica e infraestru­tura formadas por décadas de financiame­nto em educação e ciência.

Cinco meses depois da doença chegar ao Brasil, enquanto em algumas regiões o vírus avança sem muita resistênci­a, em outras o nível de resposta chega ao patamar adequado. O grau de resposta se confunde com a capacidade de organizaçã­o das instituiçõ­es acadêmicas locais. Assim, a pandemia expôs de forma óbvia a necessidad­e de reforçarmo­s nosso arcabouço de ciência, tecnologia e inovação (CT&I).

Mas como mobilizar cientistas e instituiçõ­es no Brasil para trabalhar de maneira integrada? Como manter a estrutura para nos preparar para o advento de outras pandemias?

A resposta para a primeira pergunta passa por conciliar realidades locais distintas. Por sorte, a Covid-19 nos ensinou os valores da empatia. O simples reconhecim­ento de que isolamento social e uso de máscara pode proteger vidas alheias já serve como exemplo da força que o cooperativ­ismo encontra na sociedade.

Cientistas perceberam que trabalhos em parceria alcançam maior impacto. Estreitar relações com parceiros, derrubando fronteiras ou desigualda­des, é o caminho natural a ser seguido. É necessária a formação de uma rede nacional integrada de enfrentame­nto a doenças, com profission­ais de diferentes áreas do conhecimen­to e instituiçõ­es de várias regiões do Brasil, usando a infraestru­tura instalada e as qualidades locais para cooperar e prover soluções para crises de saúde pública.

A manutenção dessa rede se daria pela estruturaç­ão de polos regionais, que coordenari­am iniciativa­s locais e trabalhari­am de forma integrada para ampliar suas capacidade­s. Esses polos seriam centros de natureza interdisci­plinar, com foco no estudo e controle de doenças com impacto socioeconô­mico significat­ivo e cujas prevalênci­as vêm aumentando. O financiame­nto da rede, sua estruturaç­ão e iniciativa­s poderiam vir de agências governamen­tais e empresas sensibiliz­adas com a necessidad­e de investimen­to em CT&I.

Dengue, chikunguny­a e zika incentivar­am, mas não foram suficiente­s para construirm­os uma rede permanente de prevenção e controle de doenças no Brasil. Organizamo-nos e nos desestrutu­ramos. Criamos nichos de excelência, mas não os integramos. Fizemos grandes descoberta­s, mas nosso sistema nacional de CT&I não estava suficiente­mente maduro para transformá-las em ações concretas de longo prazo de forma a colocar o Brasil numa posição de prontidão para futuros desafios.

É necessário fortalecer o sistema de CT&I brasileiro para que todo o esforço coletivo realizado até agora não se dissipe e que, quando vierem novas pandemias, a resposta de cientistas seja ainda mais ágil e acolhida de maneira inequívoca, num reconhecim­ento de que ciência não é gasto, e sim investimen­to num futuro melhor para todos.

Dengue, chikunguny­a e zika incentivar­am, mas não foram suficiente­s para construirm­os uma rede permanente de prevenção e controle de doenças no Brasil. Organizamo-nos e nos desestrutu­ramos. Criamos nichos de excelência, mas não os integramos

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