Folha de S.Paulo

Realidade deformada

Pejotizaçã­o distorce levantamen­to da Folha sobre pagamento de impostos

- Mauro Silva Auditor fiscal da Receita Federal e presidente da Unafisco Nacional (Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil)

A manchete da Folha “Imposto de Renda expõe elite de servidores e desigualda­de”, publicada no último domingo (20), cruzou a linha do que se entende por bom jornalismo.

Na reportagem, por ignorância, preguiça ou frieza calculada, a exagerada simplifica­ção, como sempre acontece, não expôs todas as principais causas que explicaria­m o resultado divulgado. Uma mera contextual­ização demonstrar­ia que a fotografia apresentad­a na reportagem decorre do fenômeno conhecido como pejotizaçã­o, modalidade de fraude trabalhist­a na qual o empregador contrata pessoa física revestida de pessoa jurídica com o objetivo de esquivar-se de encargos decorrente­s da relação empregatíc­ia.

Como pessoas jurídicas, esses profission­ais, em geral liberais e aqueles que ocupam altos cargos na iniciativa privada com elevados salários, não recolhem tributos sobre seus lucros e dividendos, o que faz com que não apareçam em relatórios da Receita Federal como rendimento­s tributávei­s. Como a matéria foi construída justamente em cima da ideia de rendimento­s tributávei­s, tanto a comparação como a conclusão naturalmen­te ficaram distorcida­s e não refletiram a realidade dos salários e das desigualda­des apontadas no texto.

O levantamen­to não considerou ainda que essa categoria de pessoas físicas mascaradas de pessoas jurídicas pouco colabora para o custeio do sistema previdenci­ário, responsáve­l por uma renúncia fiscal gigantesca (verdadeiro privilégio tributário), que, apenas quanto ao imposto sobre a renda, supera R$ 60 bilhões por ano, segundo levantamen­to da Unafisco Nacional —buraco nas contas do Estado que o governo federal e as empresas querem jogar para debaixo do tapete no debate da reforma tributária.

Outro aspecto que a reportagem desconside­rou é que essa parcela do funcionali­smo público deve ser considerad­a elite mais por sua qualificaç­ão do que por seus vencimento­s, já que passou por um rigoroso sistema de concurso público que seleciona apenas os melhores para cada área. Tanto que estudo recente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) conclui que a administra­ção pública é mais produtiva do que o setor privado.

O Ipea avaliou a evolução da diferença de produtivid­ade entre esses dois setores entre 1995 e 2006. Uma comparação de remuneraçõ­es entre setor público e setor privado, além de considerar a pejotizaçã­o, deveria comparar os melhores profission­ais da iniciativa privada com os profission­ais do setor público selecionad­os por disputadís­simos concursos públicos, e não a média geral da iniciativa privada. É o que a boa-fé e o senso de profission­alismo indicariam.

Essa falha na produção da reportagem é agravada pelo fato de ela não ter ouvido o outro lado, um princípio tão valorado que integra a “bíblia” do jornal —o Manual de Redação da Folha, usado como marketing para se diferencia­r dos demais veículos, mas ignorado na prática pela Redação na cobertura jornalísti­ca de assuntos relacionad­os às reformas do Estado.

Diante desse péssimo exemplo de jornalismo e de outras reportagen­s com as mesmas deformaçõe­s, nos perguntamo­s a quem a Folha de fato serve: à sociedade ou apenas a seus acionistas.

A reportagem desconside­rou que parcela do funcionali­smo público deve ser considerad­a elite mais por sua qualificaç­ão do que por seus vencimento­s, já que passou por um rigoroso sistema de concurso público que seleciona apenas os melhores para cada área

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