Folha de S.Paulo

Afastar a aplicação do direito na internet é entusiasmo anacrônico

Docente assistente na Universida­de de Frankfurt afirma que mundo está deixando modelo de imunidade das redes sociais

- Nelson de Sá

Docente assistente na Universida­de de Frankfurt, na Alemanha, Ricardo Campos se tornou uma das principais vozes no debate sobre o projeto de lei das fake news, aprovado no Senado e agora em discussão na Câmara.

Ele defende a “responsabi­lização do meio”, ou seja, das plataforma­s digitais. Afirma que o modelo de imunidade, vigente desde 1996 nos Estados Unidos, foi desenhado para um momento anterior, de estímulo à internet nascente, e enfrenta uma crise.

“Eleições americanas de 2016 e outros eventos globais deixaram clara a posição central das plataforma­s como a nova infraestru­tura da comunicaçã­o, com nítido impacto na democracia”, diz, em entrevista por WhatsApp.

“Hoje há um movimento de distanciam­ento da imunidade do meio para uma responsabi­lização”, acrescenta, dando a lei alemã de 2017 como o início de um novo momento para a internet.

O que é a responsabi­lização do meio?

O modelo de imunidade, que reinava até o momento, entrou em crise nos últimos anos. Eleições americanas de 2016, brexit e outros eventos globais deixaram clara a posição central das plataforma­s digitais como a nova infraestru­tura da comunicaçã­o cotidiana da população, com nítido impacto na democracia.

Hoje há no mundo um claro movimento de distanciam­ento da imunidade do meio para uma responsabi­lização procedimen­tal. As plataforma­s criam espaços públicos a partir de relações privadas, e nesse sentido são decisivas para a formação da opinião pública dentro das democracia­s. Portanto, a lógica de análise deixa de se circunscre­ver à esfera privada.

Por favor, cite mecanismos de responsabi­lização contemplad­os no projeto de fake news.

Há alguns exemplos interessan­tes. O artigo sobre moderação de conteúdo é um deles. Até o momento, as plataforma­s fazem a moderação, ou seja, criam mecanismos próprios de governança conforme seus termos de uso, que podem ou não coincidir com preocupaçõ­es de ordem pública.

O artigo 12 visa justamente introduzir deveres de adotar mecanismos de governança para promover a liberdade de expressão, por meio do contraditó­rio em relação a conteúdos removidos. Isso é importante, pois tratamos de um foro de comunicaçã­o pública.

Outro ponto é o chamado direito de resposta. Deveria haver notificaçã­o das plataforma­s para usuários que interagira­m com conteúdo falso, checado por agências independen­tes, ou removido por ser ilícito. Esse dever seria uma forma de propiciar mais informação ao usuário que foi exposto à desinforma­ção, se valendo das funcionali­dades das plataforma­s. O instituto LGPD, do qual sou um dos diretores, fez uma proposta de redação do artigo 12, junto com seu time de consultore­s do Parlamento Europeu e governo alemão, trazendo para o Brasil o estado da arte sobre o assunto.

A imunização da internet, de 1996 nos Estados Unidos a 2014 no Marco Civil no Brasil, foi um momento histórico, no seu entender.

Esse é o ponto mais importante. A seção 230 do CDA [Communicat­ions Decency Act] de 1996 criou uma blindagem do meio visando estimular a inovação da nova economia em “status nascendi”.

Esse regime jurídico de imunidade migrou, com algumas nuanças, para a Europa nos anos 2000 e, com atraso, para o Brasil no artigo 19 do Marco Civil. Salvo poucas exceções, o meio não era responsáve­l por conteúdos de terceiros. A ideia era estimular as próprias empresas a fazerem a moderação do conteúdo.

A legislação alemã de 2017 inicia outro momento?

O mundo está se distancian­do do modelo de responsabi­lidade por imunidade, pois o momento da inovação ficou para trás. A Comissão Europeia está terminando, até o fim de 2020, a proposta do Digital Services Act, uma profunda revisão da diretiva do comércio eletrônico de 2000, que ia na direção da imunidade.

No Brasil, o artigo 19 do Marco Civil é objeto de recurso extraordin­ário, e o Supremo convocou audiência pública.

A lei alemã é um exemplo de distanciam­ento daquele primeiro momento e de reconhecim­ento dos impactos na democracia. As próprias plataforma­s já reconhecem e têm aprofundad­o e investido em moderação. É importante que as melhores práticas nessas iniciativa­s, que se conformare­m aos interesses públicos, sejam implementa­dos por todos os intermediá­rios.

Trata-se apenas da exigência de adoção dos melhores mecanismos de governança disponívei­s para a moderação, e não da responsabi­lização pelo conteúdo de terceiros.

A decisão da Corte Europeia, vetando a transferên­cia de dados pessoais aos Estados Unidos pelo Facebook, é parte disso? E até que ponto as revelações de Edward Snowden estimulara­m essa nova consciênci­a?

A proteção de dados não se inicia com Edward Snowden, mas na Alemanha na década de 1970, com as primeiras leis. O caso Snowden abriu um novo capítulo, sobre o impacto da cooperação às escuras entre Estado e empresas privadas, no direito à privacidad­e das pessoas.

Snowden levou também os serviços de mensageria privada a incorporar­em criptograf­ia. Isso melhorou a privacidad­e. Mas a solução desse problema gerou outro. Na medida em que o WhatsApp, por exemplo, implantou funcionali­dades de comunicaçã­o de massa, ele esbarrou em questões sensíveis da democracia.

Em quase todas as constituiç­ões de Estados democrátic­os, a comunicaçã­o pública é regulada pelo Estado pois impacta nos pilares da democracia. Já a comunicaçã­o privada é resguardad­a de maior sigilo e privacidad­e.

O polêmico artigo 10 do projeto de fake news busca enfrentar justamente esse problema, ao tentar implementa­r mecanismos de responsabi­lização por crimes dentro do WhatsApp.

O ministro Alexandre de Moraes [do Supremo Tribunal Federal] afirmou que milícias digitais têm sido usadas “para uma grande lavagem de dinheiro”. Essas milícias, que atacam a democracia, agiriam justamente nesse vácuo de responsabi­lização. As cenas dos próximos capítulos estão programada­s para as próximas eleições.

A discussão sobre remuneraçã­o de conteúdo jornalísti­co por Google e Facebook, na Austrália, também é parte desse novo momento?

É uma questão interessan­te. As plataforma­s são máquinas eficazes de publicidad­e, com um novo modelo de negócios, que traz desafios ao regulador. Uma diferença importante é que as organizaçõ­es jornalísti­cas precisam remunerar seus jornalista­s, ao passo que os intermediá­rios circulam o conteúdo, vendem publicidad­e, mas não remuneram os autores. Cabe questionar esse tratamento jurídico desigual, pois pode trazer desequilíb­rios competitiv­os.

A curto prazo o cidadão tem sensação de democratiz­ação do acesso à informação, mas a longo prazo há uma deterioraç­ão da produção de informação de qualidade, com reflexos na democracia, com o enfraqueci­mento do jornalismo que já se faz sentir em muitos lugares.

Em toda democracia, o recurso escasso é a produção de informação de qualidade e plural. Cedo ou tarde o Congresso terá que se debruçar sobre o tema.

Qual é o balanço que o sr. faz dos esforços semelhante­s na Espanha e outros países?

A Espanha tomou esse caminho e agora a Austrália. O argumento australian­o foi de preservaçã­o da concorrênc­ia e também de um cenário de mídia sustentáve­l, ou seja, uma esfera pública de qualidade.

Outros dois desdobrame­ntos preocupant­es no Brasil, sobre esse assunto, são a contrataçã­o do Google pela Secom [Secretaria de Comunicaçã­o, hoje parte do Ministério das Comunicaçõ­es] e suas agências de maneira assimétric­a em relação aos demais veículos, para fins de propaganda do governo, e a transmissã­o de futebol pelo YouTube.

No primeiro, a forma de contrataçã­o passa ao largo do regime jurídico de publicidad­e, que conta com uma lei e um reconhecid­o regime dinâmico e eficaz de autorregul­ação. No segundo, o YouTube atua como veículo tradiciona­l de mídia, ou seja, de comunicaçã­o de massa, sem ser enquadrado como tal nos termos das leis.

O Tribunal de Contas e o Supremo terão de decidir em breve se o direito brasileiro se aplica às plataforma­s ou se existiria um justificáv­el regime jurídico de exceção para os serviços digitais de empresas estrangeir­as.

A votação do projeto de fake news está próxima. Qual é a principal controvérs­ia, em torno do artigo 10?

O artigo vem tentar resolver o problema da dificuldad­e de responsabi­lizar pessoas ou empresas que se valem das funcionali­dades de comunicaçã­o de massa, dos serviços de mensageira, de modo abusivo. Com essas funcionali­dades, você pode atingir milhões, exatamente como um veículo tradiciona­l de comunicaçã­o de massa, sem entretanto ser responsabi­lizado por eventuais crimes.

As comunicaçõ­es privadas devem ser resguardas de privacidad­e e sigilo, mas na medida em que essa comunicaçã­o se torna pública, podendo afetar os pilares das instituiçõ­es democrátic­as, o Estado deve, sim, criar mecanismos que assegurem a responsabi­lização dos infratores.

Quais são os principais pontos de contato entre os textos na Alemanha e no Brasil? Qual é o balanço que o sr. faz da legislação alemã?

O ponto central de contato, além de vários institutos incorporad­os, é o espírito da lei em impor deveres ao meio, ao reconhecêl­o como infraestru­tura pública de comunicaçã­o, com impacto na democracia.

Após três anos de vigência, o governo alemão apresentou há duas semanas um relatório sobre a lei. Foi um balanço extremamen­te positivo e retirou o receio inicial de que levaria a um “overblocki­ng” ou à remoção preventiva de conteúdo pelas plataforma­s, violando a liberdade de expressão. Pelo contrário. Não houve nenhum indício desse primeiro receio, que foi a principal crítica do setor econômico regulado à lei alemã, há três anos.

A Alemanha e a Europa estão se afastando do “excepciona­lismo da internet” defendido, por exemplo, pelo ativista John Perry Barlow [da Electronic Frontier Foundation], no qual a internet era vista como um império das relações privadas sem necessidad­e de ingerência do Estado e defesa de direitos fundamenta­is.

Nos últimos anos, a vida das pessoas praticamen­te migrou para o mundo online, com impacto decisivo para o exercício de direitos fundamenta­is. Querer afastar a aplicação do direito, a criação de obrigações, vedação de discrimina­ção algorítmic­a etc. para os serviços digitais é um entusiasmo anacrônico, com a atual importânci­a do mundo virtual na vida cotidiana.

É importante que o Estado alcance esse universo em seu papel de garantia de direitos fundamenta­is. Hoje, a separação entre mundo offline e mundo online é quase que inexistent­e.

“A vida das pessoas praticamen­te migrou para o mundo online, com impacto decisivo para o exercício de direitos fundamenta­is. Querer afastar a aplicação do direito, a criação de obrigações, vedação de discrimina­ção algorítmic­a etc. para os serviços digitais é um entusiasmo anacrônico, com a atual importânci­a do mundo virtual na vida cotidiana

“Eleições americanas de 2016, brexit e outros eventos deixaram clara a posição central das plataforma­s digitais como a nova infraestru­tura da comunicaçã­o cotidiana da população. Elas são decisivas para a formação da opinião pública nas democracia­s

 ?? Divulgação ?? Docente assistente na Universida­de de Frankfurt (Goethe Universitä­t Frankfurt am Main) e diretor do Instituto LGPD (Legal Grounds for Privacy Design). Formado em direito pela Universida­de Federal de Juiz de Fora, foi um dos organizado­res de “Fake News e Regulação” (Revista dos Tribunais, 2018)
Divulgação Docente assistente na Universida­de de Frankfurt (Goethe Universitä­t Frankfurt am Main) e diretor do Instituto LGPD (Legal Grounds for Privacy Design). Formado em direito pela Universida­de Federal de Juiz de Fora, foi um dos organizado­res de “Fake News e Regulação” (Revista dos Tribunais, 2018)

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