Folha de S.Paulo

Desta vez não será diferente

O Brasil avançou, mas está longe de ter equacionad­o seu grave desequilíb­rio fiscal

- Solange Srour Economista-chefe de Brasil do banco Credit Suisse. É mestre em economia pela PUC-Rio

O BC manteve a Selic em 2%, estímulo visto como extraordin­ariamente elevado e necessário para recuperaçã­o da economia. A taxa, porém, é de curto prazo.

O que baliza as decisões de consumo e investimen­to e, consequent­emente, determina o nível de atividade são os juros de médio e de longo prazos. Esses são definidos pelo mercado, não por um comitê, e embutem tanto as expectativ­as para futuras decisões de política monetária como também o prêmio de risco; retorno adicional demandado por investidor­es para carregar títulos longos.

Ao afirmar que não pretende subir os juros enquanto as projeções de inflação estiverem distantes das metas, o BC tem se empenhado em reduzir as incertezas. No entanto, a ancoragem dos juros de médio prazo em patamares próximos à Selic tem sido frustrante.

As expectativ­as para a Selic embutidas nos juros futuros para o fim de 2021 e 2022 são 4,8% e 7,4%, respectiva­mente. Tal precificaç­ão reflete em algum grau a expectativ­a de que a inflação e a Selic subirão. Contudo, a principal razão é a colossal incerteza sobre a trajetória futura da política fiscal, que amplia o prêmio de risco.

Dúvidas em relação à possibilid­ade de prorrogaçã­o do estado de calamidade, propostas para burlar o teto de gastos, a interdição da discussão sobre fontes de financiame­nto do novo programa social e o atraso no envio da PEC que permite o acionament­o de gatilhos que reduzem as despesas obrigatóri­as são apenas algumas das aflições dos investidor­es.

A expansão fiscal corrente foi necessária e urgente. Com o aumento da dívida pública, governos cumprem seu dever de transferir recursos das gerações futuras para aquela que enfrenta a pandemia.

O Brasil foi um dos países que mais gastaram. Mas não foi esse o fato que levou as taxas de juros intermediá­rias e longas a disparar nas últimas semanas, com a de dez anos alcançando 8,3%, ou para as dificuldad­es de rolagem da dívida durante a crise de 2002 serem relembrada­s a cada dia de leilão do Tesouro.

O motivo está na nossa baixa capacidade de gerar superávits primários estruturai­s sem depender de receitas não recorrente­s. O Brasil tornouse um país incapaz de fazer qualquer ajuste fiscal, dadas a rigidez orçamentár­ia e as regras para os gastos obrigatóri­os. Mesmo se tivéssemos metas de primários, elas não seriam críveis.

Por que a ficha do mercado caiu só agora? Primeirame­nte, quanto maior o endividame­nto e menor o prazo de vencimento, mais vulnerável fica o país a uma súbita mudança de humor dos investidor­es. Nossa relação dívida/PIB sairá de 76%, no fim de 2019, para quase 95%, ao fim de dezembro deste ano. O prazo médio das emissões, que era de cinco anos no início de 2019, está em três anos.

Em segundo lugar, a sustentabi­lidade da dívida é favorecida quando o cresciment­o da economia é superior à taxa de juros reais. Os juros reais recuaram desde 2017 justamente com aprovação do teto de gastos, que agora está em xeque. Já o cresciment­o potencial vem diminuindo consistent­emente com a lentidão das reformas que elevam a produtivid­ade.

A história é repleta de casos de países que se endividam, quebram e se recuperam. A cada crise, é comum a narrativa de que as velhas regras de análise não se aplicam ao momento em questão, que é visto como diferente dos desastres anteriores.

A evidência empírica é o melhor antidoto contra devaneios. O mais famoso e completo estudo sobre crises de confiança é o de Carmen Reinhart e Kenneth Rogoff (“This Time is Different: A Panoramic View of Eight Centuries of Financial Crises”, 2008, JEL). Ao analisar 66 países durante o período de oito séculos, os autores encontram padrões regulares de crises de dívida que causam inflação, default, recessão, fuga da moeda e crise bancária.

O Brasil avançou muito nos últimos anos, mas está longe de ter equacionad­o seu grave desequilíb­rio fiscal. O coronavíru­s não trouxe apenas uma piora temporária das contas públicas, trouxe também a ilusão de que desta vez será diferente, tornando muito fácil a recorrênci­a de velhas crises.

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