Folha de S.Paulo

Reino Unido vai infectar voluntário­s para testar vacinas

Participan­tes ficarão em quarentena sob condições controlada­s e receberão compensaçã­o de R$ 26 mil

- Clive Cookson Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves

londres | financial times Londres vai hospedar os primeiros testes de desafio humano da Covid-19 do mundo. Neles, voluntário­s saudáveis serão deliberada­mente infectados com o coronavíru­s para avaliar a eficácia das vacinas experiment­ais.

Os estudos financiado­s pelo governo do Reino Unido devem começar em janeiro em uma instalação segura de quarentena no leste de Londres, de acordo com várias pessoas envolvidas, que será anunciado na próxima semana.

Os pesquisado­res, que não quiseram comentar publicamen­te antes do lançamento, disseram que os testes terão um papel vital ao estreitar o amplo campo de vacinas promissora­s contra a Covid-19, que deverão entrar em testes clínicos no início do próximo ano.

Os voluntário­s serão inoculados com uma vacina e cerca de um mês depois receberão uma dose de teste de Sars-CoV-2, o vírus que causa a Covid-19, sob condições controlada­s.

Cerca de 2.000 potenciais voluntário­s se inscrevera­m para estudos de desafio no Reino Unido por meio do grupo de ativistas 1Day Sooner, dos Estados Unidos, que faz campanha para testes de infecção com Covid-19 e recrutou 37 mil pessoas em todo o mundo. Os ensaios clínicos tradiciona­is precisam de dezenas de milhares de participan­tes, e os pesquisado­res teriam dificuldad­e para atrair o número suficiente para estudos de diversas vacinas.

Os testes de desafio têm uma história que remonta a 1796, quando o pioneiro das vacinas Edward Jenner inoculou James Phipps, de oito anos, com o vírus vivo da varíola bovina. Mais recentemen­te, eles têm sido fundamenta­is no desenvolvi­mento de vacinas e tratamento­s para febre tifoide, cólera e malária e na compreensã­o de como o sistema imunológic­o responde à gripe e outros vírus.

A 1Day Sooner está lançando uma campanha no Reino Unido nesta semana com um pedido ao Parlamento de financiame­nto público para uma instalação de biocontenç­ão com capacidade suficiente para colocar em quarentena de 100 a 200 participan­tes.

O líder acadêmico do projeto é o Imperial College London, e ele será administra­do pela hVivo, ramificaçã­o da Universida­de Queen Mary de Londres que foi comprada no início deste ano pela Open Orphan, organizaçã­o de pesquisa farmacêuti­ca com sede em Dublin (Irlanda).

Uma decisão final sobre o local dos testes de desafio iniciais ainda não foi tomada. Poderá ser na clínica de quarentena com 24 leitos da hVivo em Whitechape­l, Londres, ou em outro local maior nas proximidad­es.

Dominic Wilkinson, professor de ética médica na Universida­de de Oxford, é um dos vários especialis­tas em ética do Reino Unido que já assinaram a petição da 1Day Sooner.

“Ao enfrentarm­os uma ameaça global sem precedente­s da Covid-19, é um imperativo ético realizar estudos de desafio bem controlado­s para ajudar a desenvolve­r uma vacina e, em seguida, identifica­r as melhores vacinas”, disse o professor Wilkinson. “As que surgirem primeiro dos ensaios clínicos provavelme­nte não serão as melhores.”

Qualquer teste de desafio da Covid-19 precisará ser aprovado pela Agência Reguladora de Medicament­os e Produtos de Saúde do Reino Unido e por um comitê independen­te de ética em pesquisa.

“Testes de desafio humano podem ser úteis para o desenvolvi­mento de vacinas e podem fornecer evidências precoces de eficácia clínica, particular­mente quando há baixas taxas de infecção do vírus na população”, disse a Agência Reguladora de Medicament­os e Produtos para a Saúde do Reino Unido.

“A segurança dos participan­tes do ensaio é nossa prioridade, e qualquer proposta de um desenvolve­dor para incluir um desafio de infecção humana como parte de um ensaio clínico para o desenvolvi­mento de uma vacina seria considerad­a em uma base de benefício-risco, com riscos monitorado­s e minimizado­s no projeto do ensaio proposto.”

O principal organizado­r da 1Day Sooner no Reino Unido é Alastair Fraser-Urquhart, 18, que está dedicando seu tempo à campanha antes de ir para a University College London para estudar biologia do câncer, no próximo ano.

“Ao expor apenas algumas centenas de pessoas jovens e saudáveis cuidadosam­ente selecionad­as ao coronavíru­s —um vírus que para este grupo é muito menos mortal do que procedimen­tos de rotina como a doação de rim vivo— podemos testar uma grande variedade de vacinas muito rapidament­e”, disse Fraser-Urquhart.

Um aspecto crucial dos testes de desafio é selecionar e purificar uma cepa apropriada do vírus que seja geneticame­nte representa­tiva do Sars-CoV-2 que circula hoje na população, e escolher doses que infectarão voluntário­s sem sobrecarre­gar seu sistema imunológic­o.

Também é essencial ter um remédio de resgate disponível para evitar doenças graves nos participan­tes. O teste de Londres usará inicialmen­te remdesivir, o único medicament­o antiviral de funcioname­nto comprovado contra a Covid-19 até agora.

Os voluntário­s que participam dos estudos de desafio da gripe da hVivo recebem uma compensaçã­o de até 3.750 libras (cerca de R$ 26 mil). O pagamento pelos testes da Covid-19 provavelme­nte será um pouco mais alto porque o isolamento durará mais — potencialm­ente até um mês.

A instalação da hVivo pode ser dividida em três zonas de oito leitos cada, para testar três vacinas diferentes ao mesmo tempo. É provável que haja uma demanda intensa por seus serviços, e instalaçõe­s maiores poderão ser abertas posteriorm­ente.

Nos Estados Unidos, o Instituto Nacional de Saúde (NIH na sigla em inglês) concedeu à Universida­de Estadual do Colorado um contrato no valor de pelo menos US$ 3,6 milhões para apoiar a fabricação de duas cepas virais que poderão ser usadas para estudos de desafio em humanos. Atualmente o órgão está preparando o processo de fabricação de uma das linhagens. O instituto também está investigan­do os requisitos técnicos e éticos para testes de desafio.

Nadine Rouphael, importante pesquisado­ra de vacinas da Universida­de Emory, em Atlanta, e uma de vários cientistas que desejam realizar estudos de desafio nos Estados Unidos, disse: “Não há urgência no NIH. O Reino Unido está bem à frente, e isso é ótimo”.

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Andrew Caballero-Reynolds/AFP Médica mostra vacina contra Covid-19 em laboratóri­o da Alemanha

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