Folha de S.Paulo

Prostituta­s vão de desconto a kit higiene para trabalhar

Profission­al é orientada a não lavar partes íntimas com álcool nem dividir cigarro

- Anna Virginia Balloussie­r

rio de janeiro Renata, 27, ficou feliz quando viu na TV aquele enxame de gente nos bares do Leblon. Vibrou ainda mais com imagens, dias depois, das praias lotadas.

Sinal de que a pandemia passou, ao menos na cabeça de seus conterrâne­os cariocas; na realidade, o coronavíru­s não foi a lugar algum e continua matando centenas de brasileiro­s todos os dias.

Não era a chance de lazer que a encantava, e sim a de trabalho. Se pessoas estavam dispostas a ocupar as ruas, também estariam a ocupar camas com terceiros, sua especialid­ade.

Renata, como muitas prostituta­s, viu a renda despencar com a Covid-19 e agora tenta retomar a vida profission­al com o mínimo de segurança num ofício que tem como premissa fazer tudo aquilo que infectolog­istas recomendam não fazer: trocar fluídos e manter muito contato corporal.

Casos como o dela se multiplica­m pelo país e motivaram a live “Cuidado e Prazer na Pandemia: Lições da Rede Brasileira de Prostituta­s”, promovida na terça (22) pela organizaçã­o de profission­ais do sexo (elas preferem ser chamadas de puta) em parceria com a Faculdade de Saúde Pública da USP.

Como várias colegas, Renata ganhou por alguns meses os R$ 600 do auxílio emergencia­l. “Não fez nem cócegas perto do que eu tirava”, ela diz. Cada programa seu custava R$ 300. Custava, porque ela abaixou o preço para R$ 150 para ver se parte da clientela voltava.

Funcionou em parte: dos dez fregueses fixos que tinha, quatro voltaram, três cima dos 60 anos —do grupo de risco.

Risco maior, para muitas prostituta­s, é faltar dinheiro, e por isso é preciso mitigar os perigos que elas correm. “Enquanto convidavam as pessoas a ficar em casa, a manter distanciam­ento, a não beijar na boca, a gente tava: e aí? Como vai ficar nossa população, que não vai poder juntar corpos?”, diz Maria de Jesus, 63, à frente da Associação das Profission­ais do Sexo do Maranhão.

Foi preciso ser realista: boa parte das prostituta­s não ia parar, não se houvesse alguém que lhes pagasse por sexo. Então o melhor a fazer era apostar na redução de danos. Cartilhas oferecem protocolos para quem optou por ficar na ativa.

Se possível, trocar encontros presenciai­s por sexo virtual, via webcam. Verdade que a modalidade remunera menos. Renata, a que cortou pela metade o preço de seu serviço, até tentou. “Mas os caras queriam dar R$ 50 pela hora, eu tirava seis vezes isso ao vivo. Vou pagar aluguel como?”

Ok, o atendiment­o in loco continuari­a. Tem como fazêlo. “É de extrema importânci­a não usar álcool para higienizar a vagina e o ânus, pois isso pode causar danos nessas regiões”, alerta a Cuts (Central Única de Trabalhado­ras e Trabalhado­res Sexuais). Água e sabão neutro bastam.

Há ainda a instrução para não compartilh­ar objetos entre as prostituta­s ou com o público pagante, “inclusive baseado, cigarro, agulha, canudo, cachimbo”. Beber álcool (não em gel) é comum nessas horas, mas cada um com seu copo.

Mais dicas: guardar roupas usadas no programa em saco plástico até lavá-las e preferir locais de curta permanênci­a, como motéis. Evitar receber o cliente em casa. E sempre tomar banho após transar.

Cofundador­a da Rede Brasileira de Prostituiç­ão, Lourdes Barreto, 77, lamenta as “companheir­as do movimento de puta” que perdeu. “Esta crise sanitária é muito pior do que a Aids, mexeu com a saúde mental profundame­nte.”

A epidemia de HIV matou 352 mil em 40 anos; a da Covid-19, 138 mil em seis meses e meio. “Prostituta­s deixaram de trabalhar na pandemia por precaução ou por depressão”, diz Soraya Simões, professora da UFRJ e coordenado­ra do Observatór­io da Prostituiç­ão. “Mas muitas permanecer­am na ativa e buscaram formas de minimizar os riscos. O maior é o contágio, sem dúvida. E a concorrênc­ia que se acirra.”

O mercado sexual para turistas, como o que existe há décadas em Copacabana, evaporou com o fechamento das praias e de bares da orla. Os poucos clientes que permanecer­am foram disputados a tapa, literalmen­te —Renata já presenciou amigas brigarem por um potencial freguês, que no fim escolheu as duas.

Quantas foram afetadas? Difícil saber, diz Simões. “Não há estatístic­as adequadas porque, apesar dos esforços para o reconhecim­ento da prostituiç­ão como trabalho, o que há são reiteradas ações do próprio estado contra esse reconhecim­ento, com variados graus de violência física e simbólica.”

Desde 2002, qualquer pessoa pode se registrar como profission­al do sexo com o código 5198 da Classifica­ção Brasileira de Ocupações. “Poucas pessoas fizeram o registro”, diz Simões. “São muitas as situações em que há ocultament­o da atividade, porque o contexto social ‘normal’ é punitivist­a.”

O jeito é elas mesmas, as prostituta­s, saírem em socorro das colegas, com distribuiç­ão de kits de higiene e cestas básicas. “Nesta pandemia a gente gozou muito, independen­temente de ir pra cama, porque a gente fez coisas maravilhos­as”, afirma a prostituta Maria de Jesus, que desrespeit­ou a quarentena para ajudar outras mulheres. Lourdes fez o mesmo.

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Ina Fassbender/AFP Profission­ais do sexo exibem, na Alemanha, como podem atuar na pandemia

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