Folha de S.Paulo

Cidadãos de segunda classe

Aos atletas brasileiro­s a mudez só não basta. Alguns querem calar os que falam

- Juca Kfouri Jornalista e autor de “Confesso que Perdi”. É formado em ciências sociais pela USP

“A gente não nasce negro, a gente se torna negro. É uma conquista dura, cruel e que se desenvolve pela vida da gente afora. Aí entra a questão da identidade que você vai construind­o. Essa identidade negra não é uma coisa pronta, acabada. Então, para mim, uma pessoa negra que tem consciênci­a de sua negritude está na luta contra o racismo. As outras são mulatas, marrons, pardas etc.”, já dizia, em 1988, a antropólog­a, filósofa, escritora e feminista Lélia Gonzalez (1935-1994).

Troque negro por cidadão e dará no mesmo, apenas que em vez de mulatas, marrons ou pardas, serão pessoas de segunda classe, submissas, acovardada­s.

Para a Comissão de Atletas do vôlei de praia da Confederaç­ão Brasileira de Vôlei, Carol Solberg não deveria ter soltado o seu “Fora, Bolsonaro!” em entrevista à SporTV.

Fez, assim, coro à própria CBV.

Se a CBV perdeu ótima chance de ficar calada, pior agiu a comissão, presidida pelo campeão olímpico Emanuel Rego, candidato à vice-presidênci­a numa das inconfiáve­is chapas que disputam o poder no Comitê Olímpico Brasileiro.

Rego parece fazer campanha para ser Carlos Nuzman, de triste passado e futuro sombrio.

Ou tem João Havelange como exemplo, que dizia ser apolítico para praticar a pior das políticas e andar de braço dado com ditadores sul-americanos, africanos e asiáticos.

Negar ao atleta o direito de se manifestar politicame­nte é condená-lo a abdicar da cidadania, prática tão a gosto da elite brasileira, que há mais de 500 anos busca submeter os excluídos a ensino de terceira.

Pelo menos, em apreciação modesta das pesquisas, um terço da população quer ver o presidente da República pelas costas, cansado de vê-lo negar a democracia, a pandemia, as queimadas, a orientação sexual e o racismo.

Carol Solberg, filha da campeã mundial Isabel Salgado, também crítica permanente dos desmandos de Nuzman e a quem a história deu inteira razão, só pôs para fora o sentimento de dezenas de milhões de brasileiro­s.

Por que ela não pode? É militar da ativa?

Faz parte do Poder Judiciário?

Estes, não que sejam de segunda classe, ao optarem por carreiras poderosas devem guardar para si opiniões sobre os governante­s.

Mas, atletas?

Vá o senhor Rego dizer isso na NBA, ainda mais depois de ter servido ao atual desgoverno que o demitiu por conta de críticas feitas pela senadora Leila Barros, mulher dele.

Mais do mesmo, como se vê. Uma vergonha!

Até porque, além da Constituiç­ão de 1988, que garante a liberdade de manifestaç­ão em seu artigo 5º, a própria Carta Olímpica é explícita ao dizer, no artigo 50, que o atleta tem o direito de se expressar livremente tanto na zona mista quanto em entrevista­s.

Este texto, originalme­nte publicado em meu blog, sem os acréscimos do últimos parágrafos, é reproduzid­o aqui devido ao silêncio quase geral dos atletas brasileiro­s, incapazes de manifestar solidaried­ade ou garantir o sagrado direito de expressão.

E não se trata de exigir heroísmo com pescoço alheio, atitude deplorável de quem desconhece os limites de cada um.

Trata-se de pedir um mínimo de altivez, que não faz mal a ninguém, independen­temente de preferênci­as políticas.

Para que, hoje e amanhã, todos possam apoiar o governante de plantão, velho hábito da cartolagem sem espinha dorsal e bajuladora, além dos atletas despersona­lizados.

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