Folha de S.Paulo

Filme do Grupo Galpão escancara as angústias do teatro da pandemia

‘Éramos em Bando’, da trupe mineira, viaja do fracasso à reinvenção para cativar o espectador num longa grátis

- Lúcia Monteiro

STREAMING Éramos em Bando *****

Direção: Marcelo Castro, Pablo Lobato e Vinícius de Souza. Onde: exibição gratuita no YouTube pelo canal

Grupo Galpão de Teatro e no site da distribuid­ora Embaúba Filmes. 12 anos

“Éramos em Bando” é uma obra singular numa trajetória de quase quatro décadas. O filme contém exclusivam­ente imagens gravadas pelo computador, através do aplicativo Zoom.

Depois de meio ano de pandemia, a estética da tela quadricula­da, em que cada pessoa aparece sempre só, não é novidade. Ainda assim, causa espanto a disponibil­idade afetiva, lúdica e estética dos integrante­s da trupe em embarcar num processo criativo por meio dessa tecnologia.

Quando os teatros foram fechados, em março, o Galpão preparava o espetáculo “Quer Ver Escuta”. O tom das primeiras reuniões é de perplexida­de. Paulo André diz “isso aqui está patético, um encontro falido em sua essência”.

De fato, o fracasso estava embutido na tentativa de reinventar, cada um em seu quadrado, o fazer teatral coletivo .

Se o espectador se frustra porque o verdadeiro encontro nunca ocorre, ele também se emociona com pequenas subversões no protocolo das videochama­das. Como quando cada ator apaga as luzes para se deixar iluminar só pela tela do computador. A luz de um invade o espaço dos demais. Essa brecha na divisão tão estanque dos quadrados produz surpresa e poesia.

Mais tarde, a imagem sugere que cada computador se desloca ligeiramen­te, criando novos enquadrame­ntos e revelando espaços íntimos até então escondidos, num lirismo estranho, contido.

Há, evidenteme­nte, muita melancolia ao longo dos 54 minutos de filme. Ela já fazia parte da peça original, cuja estreia, prevista para abril, não ocorreu. Talvez nunca ocorra. A sinopse trazia um cenário pós-apocalípti­co em que os humanos estão mortos, mas a poesia permanece viva.

A impossibil­idade de estar fisicament­e reunidos, alicerce do Galpão, equivale a um luto? De que serve a solidão dos planos americanos geometrica­mente dispostos? Como ensaiar depois de saber da morte de um amigo querido, o ator Flavio Migliaccio?

Veterana da companhia que tem na alegria e no desajuste seu registro de atuação predominan­te, Teuda Bara se entristece e se cala. Ao violão, Eduardo Moreira dedilha acordes capazes de mandar ir embora a saudade que mora em seu coração.

Teuda Bara é responsáve­l por passagens hilárias. Não se acerta com a câmera, não consegue desligar, não vê quem está falando. Essas dificuldad­es ora irritam os colegas, ora provocam gargalhada­s. “É como aprender a andardeper­nadepau”,resume a atriz, que na década de 1990 encenou “Romeu e Julieta” sobre hastes de madeira.

“Éramos em Bando” evoca “Moscou”, documentár­io de Eduardo Coutinho que acompanha a trupe se preparando para “Três Irmãs”, de Tchekhov. Novamente conversas espontânea­s se mesclam a cenas escritas, dirigidas e ensaiadas, recriando a aliança entre ficção e realidade.

Como obliterar os demais corpos para que um ator se sobressaia em sua cena? Desponta por acaso uma alternativ­a simples aos quadradinh­os pretos —alguém põe o dedo sobre a câmera, os outros imitam, e diferentes tons de vermelho-carne invadem a tela.

A precarieda­de das soluções artísticas para o sistema de videochama­da revela o pano de fundo de precarieda­de que domina o teatro brasileiro atual.

Fica evidente que não se encontrou substituto para o presencial. A questão é “aprender a ficar submerso”, como escreve Alberto Pucheu. O Galpão, além de ter feito a lição, ensina uma gama de respiros para toda sorte de reunião online.

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