Folha de S.Paulo

A floresta e a árvore

Enquanto Emmy celebra a excelência, TV brasileira olha o umbigo

- Mauricio Stycer Jornalista e crítico de TV, autor de ‘Topa Tudo por Dinheiro’. É mestre em sociologia pela USP

Premiações de segmentos da indústria do entretenim­ento são, é claro, autocelebr­ações. É uma forma de enfatizar e, frequentem­ente, exagerar a própria importânci­a.

Neste ano, no caso do Emmy, no entanto, não foi necessário fazer qualquer esforço nesse sentido. A pandemia obrigou as pessoas a ficarem mais tempo em casa e o consumo de televisão bateu recordes em todos os lugares.

Para muita gente, o conteúdo disponível para consumo em TVs e serviços de streaming preencheu, nestes últimos meses, um tempo que ficou ocioso em consequênc­ia das limitações provocadas pela necessidad­e de distanciam­ento social.

É inegável que há muita porcaria e bobagem na programaçã­o e nos catálogos dessas empresas. Mas também há algumas pérolas, como lembrou o Emmy.

Como disse o apresentad­or Jimmy Kimmel, na abertura da cerimônia de entrega do prêmio, “nos bons e nos maus momentos, em todos os dias da sua vida pesada, a televisão está lá para você; o mundo pode ser terrível, mas a TV nunca foi tão boa”.

Uma reação muito comum a prêmios concedidos a filmes e programas de televisão é confrontá-los com o nosso próprio gosto. Por esse prisma, o troféu é melhor ou pior se confirma ou não a nossa própria avaliação.

Outra forma de encarar essas premiações regulares é buscar compreende­r de que forma o contexto pode ter influencia­do os resultados. No caso do Emmy, as escolhas dos eleitores costumam sempre deixar muitas digitais. Neste ano, em particular, ao menos duas mensagens saltaram aos olhos.

O eleitor interessad­o em protestar contra o racismo e a violência policial contra negros encontrou em “Watchmen” a opção perfeita —uma fantasia poderosa, com muitas alusões aos dias atuais, sobre a necessidad­e de combater a discrimina­ção e os delírios supremacis­tas.

E quem está incomodado com o poder exagerado dos conglomera­dos de mídia, o viés conservado­r dos empresário­s que comandam canais de notícias e a difusão de fake news no horário nobre teve o gostinho de votar em “Succession”, da HBO. A série evoca a família que comanda a Fox, nos Estados Unidos.

Os dois programas levaram os principais prêmios em suas respectiva­s categorias (minissérie e série dramática). E, sou obrigado a dizer, validaram a minha avaliação, publicada meses atrás aqui na Ilustrada.

Globocentr­ismo

Os 70 anos da inauguraçã­o da televisão no Brasil mereceram muitas lembranças nestes últimos dias. Aliás, desde as comemoraçõ­es dos 50 anos, no ano 2000, não se falava tanto desta data.

Enfrentand­o o mais radical e disruptivo processo de transforma­ção, a indústria do audiovisua­l preferiu celebrar as glórias do passado a refletir sobre o futuro. Quase todos os canais produziram especiais sobre a data, lembrando os grandes acontecime­ntos e personalid­ades que passaram pela televisão.

A Globo produziu dois episódios do Globo Repórter alusivos à data. O segundo vai ao ar nesta sexta. O primeiro girou basicament­e em torno da própria Globo, irritando quem esperava mais generosida­de da emissora.

O problema é que o especial da Record quase só falou da Record. E o da Band tratou principalm­ente da Band. Já o da TV Cultura foi mais diversific­ado, mas feito sob o ponto de vista de José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, principal executivo da Globo por 30 anos.

Esse foco na árvore e a dificuldad­e de enxergar a floresta dizem muito sobre a televisão brasileira, o que é preocupant­e. Num momento tão desafiador quanto o atual, a falta de visão pode ser fatal.

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