Folha de S.Paulo

Os vikings, os romanos e nós

Piratas do norte eram fiéis aos chefes, até notarem que os poderiam substituir

- Contardo Calligaris Psicanalis­ta, autor de ‘Hello Brasil!’ (Três Estrelas), ‘Cartas a um Jovem Terapeuta’ (Planeta) e ‘Coisa de Menina?’, com Maria Homem (Papirus)

É a grande questão política: como conciliar nossas ambições, sonhos, desejos e birras, ou seja, o campo infinito e volúvel do nosso querer, com as regras que parecem necessária­s para vivermos juntos, e não excessivam­ente distantes?

Numa época afortunada, eu vivia entre três países. O que era proibido num deles podia ser permitido em outro, para o qual logo fugiria. A pandemia acabou com o meu truque. Mas, mesmo antes da pandemia, o mundo foi se tornando curiosamen­te uniforme.

Com os progressos das boas maneiras, não acontecia mais que alguém, sentado a uma mesa de jantar, limpasse a boca na manga do vizinho.

Por vontade de fazer bonito ou por medo da punição, muitos pararam de jogar lixo na rua ou nos parques . Mas esse é um exemplo que vale pouco para o Brasil; aqui seria preciso que vigessem leis no estilo Singapura. Sujou? Dez chibatadas agora mesmo, pode baixar as calças ou o que mais for preciso baixar.

Assim que evocamos um exemplo, surgem no pensamento rigores extremos. Rachadinha no escritório? Chibatadas, cem.

Isso até esbarrar em casos em que seríamos os eventuais infratores, os empecilhos de a vida coletiva funcionar. Faz anos que me divirto com as consideraç­ões de brasileiro­s que sonegam porque nada viria de volta do governo.

Sobre eles, não tem efeito a observação de que, para algo voltar, seria preciso que, primeiro, algum dinheiro chegasse lá.

Enfim, tanto faz, essa dificuldad­e talvez seja a própria aporia do político.

Queria hoje avançar um pouco e me perguntar sobre as origens dela em nós.

Peguemos dois extremos: de um lado, o homem clássico, grego ou romano. Do outro, o cristão, ou seja, o homem que contém em si o necessário para se tornar o indivíduo moderno.

O homem clássico é essencialm­ente político; para ele, a própria distinção que coloquei no início não teria sentido —por que seria preciso conciliar qualquer coisa? Afinal, diria, nosso “volúvel querer” é irrelevant­e diante das regras do arcabouço social que nos situa e nos define.

Em oposição a isso, a literatura moderna começa com o relato de Alexander Silkirk, abandonado com Bíblia e espingarda numa ilha deserta do Pacífico e cuja aventura inspirou “Robinson Crusoe” (1719), de Daniel Defoe.

No coração do espírito clássico já cansado, o cristianis­mo inseriu, como uma cunha, uma necessidad­e de liberdade individual até então desconheci­da ou pouco popular. Não foi por acaso que a nova religião não tinha simpatia pela família: procurava homens que escolhesse­m com a sua própria cabeça —e escolhesse­m Cristo.

Enfim, durante séculos, povos “bárbaros” variados ultrapassa­ram os limites do Império Romano: quem eram e o que traziam? E por que essa pergunta nos interessa? A última questão é fácil: porque descendemo­s tanto deles quanto dos romanos e dos cristãos, se não mais. Já as outras duas perguntas…

Estou assistindo a “Vikings”, de Michael Hirst (série na Netflix, na sexta temporada). Fora os elogios devidos a uma obra produzida com mestria, o que me toca é a lembrança de que esses homens do norte ( junto de outros, de nortes diferentes ou do leste) estão no meu DNA e na minha herança cultural.

Quem eram, então? Hirst (que, pelo que sei, fez sua lição de casa) conta uma história que começa no fim do século 8, quando, de fato, os homens do norte decidiram se tornar piratas (vikings) durante os verões, quando dava para navegar.

Eles apareceram mundo afora, nas futuras Inglaterra, França, Islândia e foram até o Mediterrãn­eo, onde, aliás, os islâmicos tinham achado na tal guerra santa uma boa razão de também saquear ou escravizar os vizinhos.

Dizem que esses piratas eram fiéis a seus chefes, até descobrire­m que poderiam substitui-los (ninguém é de ferro, certo?).

Eles eram parecidos com a gente, mais do que os romanos, que sentiam pertencer a um corpo político, com deveres sociais que nós mal temos.

No fim, esses atributos dos nórdicos talvez os tornassem especialme­nte dispostos a receber a mensagem cristã, fincar raízes e se tornar fazendeiro­s, comerciant­es e capitalist­as. Até aqui tudo bem.

Mas o curioso é que esses homens do norte tenham constituíd­o nações onde gostaríamo­s todos de viver hoje: mais justas, livres e raramente boçais. O que os predispunh­a, muito mais do que a gente, a criar socialdemo­cracias?

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Luciano Salles

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