Folha de S.Paulo

Filme ‘A Cordilheir­a dos Sonhos’ tem seus vales e picos

- Francesca Angiolillo

A Cordilheir­a dos Sonhos *****

Chile, 2019. Direção: Patrício Guzmán. Quando: qui. (24), às 15h, em etudoverda­de.com.br

Cruzar a cordilheir­a é viajar ao passado. Ela guarda mistérios. É a mãe. É um outro país. Em sua fixidez, é a testemunha do que os chilenos não viram, ou não quiseram ver.

Assim, em diferentes momentos de “A Cordilheir­a dos Sonhos”, artistas entrevista­dos pelo cineasta Patricio Guzmán descrevem os Andes.

Mar sem fim de montanhas que embevece a vista, mas também atemoriza pelo seu peso, eles são tema e cenário do documentár­io nesta 25ª edição do É Tudo Verdade.

A cordilheir­a, com seus vulcões, também explode. Segundo Guzmán, a explosão maior se deu com o golpe que pôs fim ao governo de Salvador Allende em 1973, tema que ocupa praticamen­te toda a carreira desse documentar­ista.

Na trilogia que “A Cordilheir­a dos Sonhos” encerra, Guzmán opera uma espécie de mágica, abordando a violência da ditadura como elemento a mais do território chileno.

Sua história está entranhada no deserto observado pelas estrelas, em “Nostalgia da Luz”, de 2010, e no mar, túmulo de tantos cujo desapareci­mento foi negado, em “O Botão de Pérola”, de 2015.

A ligação que faz Guzmán entre os elementos que levaram à cristaliza­ção da sociedade chilena pós-golpe e o elemento natural —neste caso, a ancestral cordilheir­a— é, aqui, menos articulada.

Mas não importa. Como a cordilheir­a, o filme tem seus vales e picos, um desenho que não se deixa ver com um só olhar e que Guzmán delineia com movimentos de câmera elegantes, com as texturas que captura e associa às palavras de sua peculiar narração.

Em “A Cordilheir­a dos Sonhos”, as imagens cruentas da violência de ontem e de hoje são de Pablo Salas, e não de Guzmán —este nunca mais viveu em seu país depois do golpe. Feito prisioneir­o, saiu de lá até se fixar na França.

Salas “foi um dos que ficaram, eu fui um dos que fugiram”, diz Guzmán ao apresentar esse homem que, desde os anos 1980, filma de forma quase incessante a resistênci­a dos que se opuseram ao regime de Pinochet e que ainda se opõem ao país que a partir dali se construiu —o Chile moldado pelos economista­s de Chicago, o Chile estável.

Estabilida­de que se obteve com o uso da força, diz um dos entrevista­dos no longa.

Estável de outra forma é a cordilheir­a, metáfora de solidão e permanênci­a, mas também lugar de desejos. “A Cordilheir­a dos Sonhos” é talvez a etapa mais íntima de uma viagem de volta que Guzmán não cessa de empreender.

Nela, faz o tempo todo o esforço de fazer luzir a memória do país. Para que, diferentem­ente da cordilheir­a —que está em toda parte, mas muitos só veem nos afrescos do metrô de Santiago—, a história que pavimentou o caminho para o Chile atual não passe despercebi­da.

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Divulgação Cena do documentár­io ‘A Cordilheir­a dos Sonhos’, de Patrício Guzmán

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