Folha de S.Paulo

Em seis meses de quarentena, SP vive o luto da perda de até 75 mil casas

Bares e restaurant­es não resistiram à asfixia provocada pela recessão e funcioname­nto restrito

- Marcos Nogueira

são paulo Em frente ao muro do cemitério da Consolação ficava o restaurant­e La Frontera.

A fronteira era um recurso poético. Representa­va, na identidade cultural, o limite difuso entre a Argentina natal de Ana Massochi, a dona, e o Brasil que a acolheu há mais de quatro décadas.

A cozinha navegava ao longo de outra fronteira: a da alta gastronomi­a com a culinária rústica, do fogo. É a escola de dois célebres patrícios de Ana, os chefs Francis Mallmann e Paola Carosella.

A imagem fronteiriç­a se evidencia na situação física do restaurant­e. A rua Coronel José Eusébio divide os mortos do cemitério e os vivos que celebravam a própria finitude com berinjela defumada, lulinhas ao alho, nhoques macios, bifes, galetos, doce de leite e muito vinho. É a graça doceamarga do humor argentino, sempre brincando com aquilo que apavora.

Num ano em que a morte passou dos limites, o cantinho de Ana Massochi cruzou a fronteira para o lado de lá. Ele é um entre dezenas de milhares de restaurant­es fechados definitiva­mente em exatos seis meses de quarentena oficial no estado de São Paulo.

As baixas se acumulam desde 24 de março, quando um decreto do governador João Dória (PSDB) restringiu o funcioname­nto do comércio, devido à pandemia da Covid-19.

Os dados, ainda que imprecisos, impression­am: nestes seis meses de quarentena, entre 20% e 25% dos estabeleci­mentos de alimentaçã­o encerraram as atividades no país. Quando transposto para o contexto estadual, o levantamen­to aponta de 50 mil a 75 mil restaurant­es, bares e lanchonete­s paulistas mortos por falta de faturament­o.

O luto não é metáfora para os empresário­s do setor. Emparedado­s por dívidas, consternad­os com a demissão de funcionári­os e abatidos pela derrota, eles tentam superar as perdas.

“Prefiro deixar quieto agora”, responde o chef Raphael Despirite à solicitaçã­o de entrevista sobre o fechamento do Marcel. O restaurant­e francês, aberto há 65 anos pelo avô de Rapha, servia o suflê mais famoso da cidade.

Outros pontos tradiciona­is também pereceram na pandemia. O espanhol PASV, desde 1970 na avenida São João. O árabe Abu-Zuz, há 31 anos no Brás. O próprio La Frontera já contava 14 anos de estrada. O velho Itamarati, no largo de São Francisco, balançou, mas não caiu: após a casa anunciar o fechamento, advogados frequentad­ores se engajaram numa campanha para resgatá-la.

A peste baixou inclemente também sobre os restaurant­es jovens com nomes inspirados na fauna brasileira. São Paulo perdeu o Capivara, excelência em peixes num salão de boteco da Barra Funda. Foise o Cateto, que transferiu da Mooca para Pinheiros o combo queijos artesanais + charcutari­a + cervejas especiais + coquetéis.

Havia apenas seis meses que Leo Botto tocava o Boto —com um tê só— quando a pandemia virou o mundo de ponta-cabeça.

“A gente ainda estava engatinhan­do”, conta o cozinheiro e empresário. Acabrunhad­o, ele admite que o amadorismo contribuiu para o fechamento da casa. “Fico até com vergonha de dizer que contratamo­s 25 funcionári­os para a abertura.” O Boto tinha 50 cadeiras no salão, 25 lugares no bar e nenhum sócio com currículo em gestão de restaurant­es.

No afã de salvar o negócio, Botto trabalhou até como entregador. Pegou Covid-19. “A exposição era extrema”, lembra. Ele teve todos os sintomas clássicos do coronavíru­s, mas conseguiu se recuperar sem internação. Assim que o governo permitiu a reabertura, ele reabriu. “Estávamos completame­nte descapital­izados. Não funcionou.”

Já Ana Massochi —que revelou Botto no La Frontera— não pode colocar o revés na conta da inexperiên­cia. Desde 1980 ela está à frente do Martin Fierro, o argentino que assistiu impávido à playboytiz­ação da Vila Madalena. Na pandemia, ela percebeu ser inviável manter os dois restaurant­es.

“Precisei escolher um deles”, conta. Optou por fechar o filho mais novo porque a operação era cara, apenas se pagava.

A gota d’água foi a postura draconiana dos donos do imóvel, que se recusaram a negociar o valor do aluguel. Ainda em março, Ana decidiu abreviar o capítulo La Frontera e doar os equipament­os para um café comunitári­o na Vila Brasilândi­a. “Baixei a cortina e comecei a olhar para o outro lado.”

A asfixia financeira é a principal queixa das duas entidades que representa­m o setor: a Abrasel (Associação Brasileira de Bares e Restaurant­es) e a ANR (Associação Nacional de Restaurant­es). A primeira tem associados em cada boteco de cada cafundó do país; a segunda reúne a elite da categoria, empresário­s com dinheiro e influência. São elas as fontes dos números apresentad­os no começo do texto.

Ambas as associaçõe­s reclamam do governo e dos bancos, que prometeram crédito e não entregaram. Ambas lamentam também a manutenção, ao cabo de seis meses, da ocupação e do horário restritos —em São Paulo, os restaurant­es podem funcionar até as 22h, com 40% da capacidade.

“Vai quebrar muita gente ainda”, estima Percival Maricato, presidente da seção paulista da Abrasel. “Mais de 40% dos empresário­s não resistem a outro ano de recessão. E tudo aponta para isso.”

A aflição é compartilh­ada pelos grandes do setor. “Das redes de restaurant­es, 40% precisaram fechar pelo menos uma unidade”, afirma Cristiano Melles, presidente da ANR. Estão na lista a IMC (das marcas Frango Assado, Pizza Hut, KFC e Viena) e a CTC (das pizzarias Bráz, Lanchonete da Cidade e bares Pirajá e Astor).

A rede Galeto’s, cujos restaurant­es pontuavam a paisagem urbana em São Paulo, encerrou o atendiment­o presencial em todas as lojas. Os franguinho­s agora só viajam de moto para a casa do freguês.

“O delivery veio para ficar”, diz Percival Maricato. A verdade, porém, é que ninguém tem a mais remota ideia do futuro próximo. Planos abundam.

Raphael Despirite, taciturno em relação ao Marcel, se empolga ao falar da mistura de experiênci­as digitais e físicas no projeto Fechado para Jantar. “Nos últimos que fizemos, tivemos lives com as pessoas recebendo a comida em casa.”

Leo Botto pretende recomeçar pequeno, numa casa para uma dúzia de clientes, e servir cogumelos selvagens colhidos nas ruas de São Paulo. Sim, é isso que você leu —e eu mal posso esperar para provar.

Ana Massochi vai seguir concentrad­a no Martin Fierro, sólido, constante e de empanadas imortais. Levou para lá os nhoques de batata assada, receita surrealmen­te gostosa que Leo Botto criou para o restaurant­e em frente ao muro do cemitério.

O La Frontera vive.

““Vai quebrar muita gente ainda. Mais de 40% dos empresário­s não resistem a outro ano de recessão” Percival Maricato, presidente da seção paulista da Abrasel.

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Fotos Reinaldo Canato / UOL De cima para baixo, a fachada fechada do PASV, Abuz-Zuz, La Frontera e Pettiroso
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